quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Eutanásia

Caravaggio -Jerome in Meditation
Ser ou não ser? Eis a questão.
O questionamento shakespiriano traz uma gama de possibilidades, mas eu inventei para mim um significado. E se ele já existe, deixa estar. Quem nunca criou algo já criado?
Apresento meu relato parafraseando Hamlet, mas que ele não seja entendido como complexo de Ofélia. É um relato queixa. E uma queixa diálogo. E um diálogo monólogo:

As paredes brancas do hospital, as roupas brancas dos médicos, o semblante de derrota dos pacientes, as lágrimas dos acompanhantes. Tudo sem cor. Tudo isso me impulsiona a ir contra a corrente.
O senso comum luta contra a morte, o médico luta por uma vida, e eu luto por uma vida sem dor, nem que ela seja não existência.

Não me fale sobre ética se na sua experiência subjetiva dentro de seu corpo, fica difícil se imaginar sob a pele do outro. Há um deserto existencial entre nós. Eu grito, mas você não me ouve. Sua ética é o deserto. É desértica.

Cada dia para mim é como um capítulo no mito de Sísifo. Empurro minha pedra de morfina morro acima só para vê-la rolar morro abaixo. Você quer me ver transpirar a última gota, quer esgotar-me o fôlego para o infinito. Mas o infinito não existe. Lá é onde as retas paralelas se encontram. Nossas retas. Distantes demais.
Um dia o livro se cansa e Sísifo termina. O anti-herói morre e a pedra se parte.

Um tango argentino já não basta neste quarto de hospital. Um sorriso pintado dos palhaços que são mais tristes do que eu já não me compra. Uma mão amiga nessa imensidão branca já não me alcança.
Então me deixa ir. Não nascemos juntos e preservei teu nome. Minhas linhas não te traem, meus poemas não te rompem nem me corrompem.

O que me mantém vivo é uma máquina. Roubo-lhe a vitalidade elétrica. Sou um impostor. Essa vida não é minha. Seus sons ritmados são como passos, cada vez mais distantes, cada vez mais ausentes. São como uma pedra que se quebra. Que se quebrou. Deixa-me ir. Deixa-me morrer.

Música para incentivar as reflexões trazidas pelo texto:

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Saxofone Para Um Analfabeto

Roberto Ferri -Sfinge
Comprei um saxofone, mas não sei tocar. Ele é como um caderno vazio para quem não sabe escrever: não sei arrancar-lhe os versos, não sei ritmar as palavras. É tudo uma triste energia potencial. Falta-me a poética para fazer-lhe energia cinética.

Chove e o tempo está nublado. Tudo é cinza, borrão melancólico. Manhã para comprar um livro de poemas. Comprei um Mário Quintana.. Mas também não sei ler. Meu pai era músico e morreu antes de me ensinar a extrair a melodia do poema. Tropeço no título, me perco nas rimas e no labirinto não sei como prosseguir. Tem de ser bilíngue para se tocar saxofone e ler poemas.. As letras são notas musicais.
Mas agora não aprendo mais. O cérebro já é músculo atrofiado e os olhos estão calejados de poeira acumulada que se fez catarata.

Meu quarto é breve, pequeno como um poema do Quintana. Vai-se de uma parede a outra em poucas palavras. Percorre-se uma estrofe com passos lacônicos.

Quem não enxerga tem que aprender a tatear. Então aprendi a sobrepujar a cegueira lendo a beleza do papel em branco e fazendo melodias com o silêncio. O papel em branco tem muito a dizer e o silêncio pode gritar. É preciso estar atento para se entender a mensagem dessas vozes dismorfas. É por isso que muitos não suportam ficar sozinhos. Os papéis e o silêncio viram fantasmas. E o homem tem medo do desconhecido, não entende.

Agora causei uma torção no sentido. Agora os cegos são os outros. Sou analfabeto mas escrevo existência, participo na composição do instante.
Posso dizer que leio meu livro e toco meu saxofone. É tudo existencial.
É questão de musicar a vida. Ad infinitum.



**Ironicamente, não consigo escrever no silêncio. Enquanto escrevia, eu escutava isso: Clueso e Antonio Lucaciu -Beinah