terça-feira, 19 de agosto de 2014

O Universo Numa Capa de Livro



Quem quer que tenha dito que o universo está numa casca de noz, estava mentindo. O universo se encontra na capa de um livro. Analise a capa junto com a pessoa que a carrega e terá um monte de significados. Os detalhes são preciosos e temos que ficar atentos. Um piscar de olhos pode nos cegar para o infinito particular.

Vamos começar por aquela garota ali no fundo lendo O Mito da Beleza, da Naomi Wolf. Com certeza ela começou a ler essa autora pelo livro chamado Vagina- Uma Biografia. Ela o descobriu quando a Apple censurou a vagina do título. O proibido sempre soa como um convite. Sentada ali sozinha, se cansou de ser bonita. Ninguém a vê como alguém inteligente (e ela de fato o é). Há algo de sofrido na beleza porque perto dela tudo se torna comum. Mas desconfio que nos desejos mais desesperados, essa moça queria ser apenas isso mesmo, comum. Vamos desejar-lhe boa sorte.

Aquele rapaz ali na frente lendo o bispo Macedo se acha uma pessoa exemplar. Não espalha, mas ele contribuiu para o Templo de Salomão. Se perguntarem a ele como ele se define, ele dirá que é uma pessoa de bem, defensor da família, da moral e dos bons costumes. Mas enquanto ninguém via, ele condenou o casal de lésbicas que conseguiram adotar um bebê. Que entreguem para o orfanato, ele diria. Acredita em teorias da conspiração e é capaz de jurar que os Illuminati estão implantando a Nova Ordem Mundial através de chips que as pessoas usarão sob a pele com a marca da besta. Isso tudo enquanto espera pela volta do bondoso Jesus Cristo. Oremos por ele e passemos adiante.

E aquele rapaz ali lendo Don Kulick?! Sei que conheceu o autor lendo sobre suas análises de pornografia da gordura. Ele se diz abertamente homossexual e não pede por aceitação, obrigado. Só quer respeito. Também se diz livre de preconceitos, mas faz juízo de valor entre ativos e passivos e não anda com os afeminados para "não queimar o filme". E diz isso o tempo todo, a fala sempre precedida pelo "nada contra, mas..". É sempre um negócio muito doido perceber como algumas pessoas perpetuam os preconceitos que elas mesmas sofrem.

Agora observe aquele rapaz ali, de preto, lendo Dawkings. Aquele lá no canto. Ele curte a página da ATEA no facebook e quer fazer do ateísmo uma nova igrejinha. Não vê que seu comportamento está igual ao dos  TJ -Testemunhas de Jeová- que ele tanto abomina quando batem à sua porta todo domingo de manhã. Ele quer que o mundo saiba do seu ateísmo raivoso, procurando uma boa briga pela verdade de deus em cada esquina e acredita em uma eterna dicotomia entre ateus e cristãos, os bons e os maus.

Há uma transexual ali na frente. Ela está lendo Filha, Mãe, Avó e Puta, livro da Gabriela Leite. Leitura deliciosa. Essa moça não teve a vida fácil. Expulsa de casa cedo, sempre se revoltou porque a sociedade lhe atribuiu um gênero que não lhe cabe. Teve que se prostituir no início porque não conseguia emprego em lojas. Nas entrevistas, ouvia sempre que sua "imagem" não coadunava com os objetivos da loja. Isso dito entre sorrisos, claro. Militante, aposta que as futuras gerações estudarão os tempos de hoje como a quarta onda do feminismo, em defesa de mulheres como ela. Mas ainda hoje sofre por não encontrar uma definição excelente do termo mulher, sem enxergar que a mulher foi construída e gênero tem que ser tratado como idéia velha. Mas ela está no caminho certo.

O restante dos passageiros não carrega livros. Não podemos ler seus abismos. Mas uma coisa me intriga nesses leitores.  Por que todos eles sofrem com problemas relacionados à visão? Enxergam muito bem, mas não estão conscientes da cegueira que impede a visão do todo. Só vêem os cantos e não aparam as arestas. Queria conversar com eles, mas tenho meu próprio livro para terminar.

Eu me sento ali no fundo mesmo, meio que escondido. Leio Três Verões, da Julia Glass. Novamente peço que não espalhem, mas esse é meu livro preferido. Ele me mostra como a vida é sofrida e às vezes não vale a pena. Mas se soubermos enxergar o todo, cada um encontra um melhor caminho. E digo a verdade. Senão o livro não teria sido escrito.
Por isso escolho prosseguir e tento a poesia antes de mais nada. E dou risada enquanto vou aprendendo que é um erro julgar o leitor pela capa.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Quarenta Cigarros

After The Thrill Is Gone -Jack Vettriano


Perdi o relógio.
Contava as horas pelos cigarros espalhados no chão.
Três cigarros.
Olho pra mim, contemplo um mundo.
Contemplo o vazio.
Sete cigarros.
A barra do vestido toca o chão.
As lágrimas umedecem os cigarros.
O sorriso seca as lágrimas.
Entre sorrisos e lágrimas a vida mostra seu equilíbrio.
Treze cigarros.
O número me abre pro misticismo da vida.
Quanto dela é destino e quanto dela fui eu que criei?
Dezessete cigarros.
Desisti de pensar.
Só quero estar viva.
Faz um ano que recebi o diagnóstico.
Vinte e três cigarros.
Vivi um ano inteiro com medo.
A cada manhã a mesma pergunta: "será hoje"?
"O hoje, talvez amanhã", dizia a voz interior ao final do dia.
Trinta cigarros.
Hoje acoredei com essa certeza.
Hoje completo o ciclo.
O salto esfola o calcanhar.
Fico descalço.
Trinta e três cigarros.
Fecho a porta.
Fecho a janela.
Não quero luz, não quero som.
Se vou conviver comigo, que seja de uma vez.
Trinta e sete cigarros.
Tiro o vestido.
Quero morrer nua, com o nariz para o céu.
Descruzo os braços como quem aceita a vida (ou o que resta dela).
A respiração falha.
Só queria saber as horas.
Mas abro um sorriso.
Quarenta cigarros.