segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Texto Sobre a Peça Aqueles Dois



Antes de ler este texto (ou assistir à peça), leia o texto Aqueles Dois, de Caio Fernando Abreu, que serviu de base para a peça (é rapidinho, o texto é curto!): http://www.releituras.com/caioabreu_dois.asp

Por indicação de um amigo, fui assistir à peça Aqueles Dois, que será apresentada até outubro no Palácio das Artes. Escrevo este texto como leigo. Não conheço os pormenores técnicos do teatro e já peço perdão ao meu amigo e a todos os que possuem os olhos treinados para esses detalhes. Então por que escrever sobre isso?! Simplesmente porque um leigo escreve para outro leigo. Gosto de ler textos assim, que não abrangem aquelas partes técnicas que não entendo, deixando ver somente o olhar de quem se emociona durante a experiência, não passando disso.

Crédito: Rodrigo Zeferino



Raul e Saul. Dois nomes separados apenas por uma letra. Apresentados no primeiro dia de trabalho, os personagens riem da coincidência. Suas diferenças e semelhanças são mostradas, e eles vão se adaptando à intimidade que cresce à medida que os vários "eus" de um vêm à tona para o outro. Sabemos de antemão que é um encontro de duas almas distintas que se vêem iguais em meio a um "mar de almas", como um deles diz. Eles são estrangeiros denotativa e conotativamente: um vem do norte, e o outro, do sul. Além disso, seu cotidiano não é igual ao das outras pessoas do trabalho, assim como as suas aparências. São duas pessoas que, além de serem "de fora", são excluídas.



O texto tem como personagens principais apenas os dois. Sendo assim, no início achei que os quatro atores no palco representassem Raul e Saul, ambos em épocas diferentes. Mas não. Os quatro são Raul e Saul ao mesmo tempo. O número aqui não importa porque os dois personagens querem ser um só. É a fome afetiva que acomete e contra a qual é difícil resistir. Eles vão revezando entre os personagens e os cenários, num jogo de claro e escuro da iluminação.

Com o início da intimidade, as pessoas do trabalho começam a ficar incomodadas. As moças, que antes se limitavam a esticadas de pescoços para observar brevemente, agora chamam toda a equipe para sair após o expediente. Quando vão a esses encontros, Raul e Saul ficam distantes, só entre eles. Eles se bastam. Esses personagens secundários também são interpretados pelos quatro atores, de forma muito divertida.

Saul desenhava rostos com enormes olhos sem íris nem pupilas. Ele não se via, ou se via ausente no mundo, e desenhava esses quadros metáforas. Ele quase sempre pintava quando olhava para o quadro de Van Gogh que tinha na parede. "(...)aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo.". Era o vazio e o deslocamento que o motivava. Assim também era Raul, que gostava de cantar boleros, em especial Tú Me Acostumbraste.
De Slapkamer -Van Gogh

Crédito: Chico Lima

Entre presenças e ausências passadas desejando presenças, fazem aniversário e o presente dado é uma forma de permanecer lembrado. Raul dá a Saul seu sabiá, Carlos Gardel. E o outro lhe dá seu quadro de Van Gogh. No teatro, a mão segura o vazio representado pela gaiola e os dois apontam para o nada, onde se encontra a parede com o quadro. Imaginar os objetos ficou belo na cena, pois são apenas simbólicos, representam muito mais do que o objeto em si, que é apenas imagético.

Com a morte da mãe de Raul, a ausência se intensifica e a fome afetiva se mostra com mais força. A fome é desespero, e desesperado é o abraço dado, em que a vontade é se tornar uno. A cena é feita assim, com medo de que tudo o momento passe, como no texto. E assim ficaram por um bom tempo. "Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool."

Crédito: Guto Muniz

A intimidade vai incomodando mais os colegas de trabalho, que chegam a reclamar com o chefe. "Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como "relação anormal e ostensiva", "desavergonhada aberração", "comportamento doentio", "psicologia deformada", sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral.". Os dois são demitidos, punidos pelo afeto.  Entram no mesmo táxi e vão embora. "Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram."

A mensagem final do autor é como uma martelada. Continua muito atual, apesar do conto ter sido escrito em 1982. Em nenhum momento do conto é dito que os personagens são homossexuais. Podem ser apenas bons amigos ou podem ser mais que isso. Atualmente já foi cunhado o termo "bromance" para designar a amizade entre dois homens que não teme demonstrar carinho (leia  http://pt.wikipedia.org/wiki/Bromance). O que interessa é que os colegas de trabalho sentem aversão ao afeto. E assim também é na vida real.

O que nos fica após a peça ou após o texto, é que os personagens ainda se fazem a mesma pergunta: o que é o amor?! Talvez já tenham descoberto.

Cena da peça Prazer, da mesma companhia de teatro (crédito: Guto Muniz)