domingo, 27 de dezembro de 2015

O embranquecimento do negro -sobre o livro Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie

Hibisco Roxo -capa



“Como formar uma identidade em torno da cor e da negritude
não assumidas pela maioria cujo futuro foi projetado no sonho do
branqueamento? Como formar uma identidade em torno de uma
cultura até certo ponto expropriada e nem sempre assumida com
orgulho pela maioria de negros e mestiços?” (MUNANGA, 1999: 124)

Hibisco Roxo, Companhia das Letras -2003.
Hibisco Roxo é um livro sobre como o poder se exerce do mais forte sobre o mais fraco. Dispondo de estruturas como a Igreja, colonização e famílias patriarcais, brancos dominam negros, homens dominam mulheres, pais dominam filhos e governos dominam cidadãos.

RACISMO

Os nigerianos, assim como os índios brasileiros, sofreram um apagamento de sua cultura pelos colonizadores (No caso da Nigéria, pelos britânicos). Kambili, nossa protagonista, aprende com o pai -um fanático religioso- que a cultura dos brancos é superior. Culpa da obra missionária, que trouxe a religião católica como a correta. O pai de Kambili assimila para si os preconceitos trazidos pelos missionários e os reproduz sem ter a noção de que seu discurso se volta contra si mesmo. 

Em casa é permitido falar o idioma igbo, mas em público tem de falar o inglês, que "é mais civilizado". Não se pode cantar nas Igrejas, porque "não é algo que um branco faria". Os cantos na igreja também têm de ser em inglês (dessa vez, ordens do padre, um britânico branco). A coisa chega ao ponto de Kambili imaginar um deus pessoal e branco. Todas essas práticas acabam por resultar na perda da identidade de um povo. É o aniquilamento de uma cultura por outra cultura que se acha superior. O famoso etnocentrismo.

Em uma passagem, a personagem Amaka, menina bastante esclarecida, indaga um padre negro que está indo em missão para a Alemanha:

"Os missionários brancos trouxeram seu deus para cá -disse Amaka.- Um deus da mesma cor que eles, adorado na língua deles, e empacotado nas caixas que eles fabricam. Agora que estamos levando esse deus de volta para eles, não devíamos pelo menos empacotá-lo em outra caixa?" pág.281

Não é difícil traçar paralelos com o Brasil, em que a mesma estratégia usada lá para repudiar a religião e a cultura tradicionalista, é usada aqui para repudiar as religiões e cultura de matriz africana. A estratégia é dizer que são obras do demônio e essas práticas são porta de entrada para o inferno. Temos exemplos de terreiros incendiados por membros de religiões neopentecostais e a ala das baianas que estava encontrando dificuldade para achar membros, pois as senhoras estão aderindo a essas religiões evangélicas e sendo proibidas de participar do carnaval.

Chimamanda Ngozi Adichie, autora


MISOGINIA

O poder baseado na diferença de gênero também é mostrado. Ele é exercido contra as mulheres para sustentar a dominação masculina. A mãe de Kambili é submissa ao ponto de ficarmos com raiva de tana passividade. Mas ao longo da leitura suas razões são mostradas. Ela sofre de dependência financeira e emocional. Ela depende do marido para todas as decisões e apanha dele. Não fez uma faculdade e não possui nenhuma perspectiva de emprego.

Seus diálogos são sempre reveladores da sua condição. Ela é grata pelo marido não ter arrumado outra esposa e a tirado de casa com os dois filhos atuais. Ele pode fazer isso porque ela não lhe deu mais filhos e vem sofrendo consequentes abortos (ironicamente, abortos que são em parte consequência das agressões sofridas). 

Em um diálogo com a cunhada, ela reproduz todo o senso comum aprendido pela esmagadora maioria da população: que a mulher se realiza no casamento. E em seguida tendo filhos. Trabalhar, fazer uma faculdade não importa. No que a cunhada retruca:

"-Não sei quem vai tomar conta de quem. Seis meninas da minha turma de primeiro ano estão casadas. Os maridos vêm visitá-las de Mercedes e Lexus todo fim de semana, compram estéreos, livros e geladeiras para elas e, quando elas se formarem, eles é que vão ser os donos delas e de seus diplomas. Não entende?" pág. 84

Não, ela não entende. Também já assimilou um preconceito que se volta contra ela mesma.

FIGURAS DE AUTORIDADE

Kambili tem muita dificuldade em questionar, em ter opinião, em grande parte porque apreende da relação com o pai que não se deve questionar figuras de autoridade. Todas as ordens são obedecidas à risca. 

Talvez por estar um pouco mais abaixo que o irmão na escala de poder (ela é negra, é mulher e é jovem), ela não consegue transgredir nesse ponto. O irmão sim, começando a desafiar os costumes do pai, principalmente no quesito religioso. Vale ressaltar que os dois recebem praticamente a mesma educação.

A tática de dominação do pai é o medo. Se fizer algo fora do costume religioso, há o inferno. Se fizer algo que desagrade o pai, há os castigos, que nunca são brandos. Vão desde apanhar de vara do jardim até pisar em água fervente "para se purificar do pecado". A religião se une à ignorância para criar punições que garantem a manutenção do controle sobre os corpos.


O OPRIMIDO COMO ALIADO DO OPRESSOR

Simone de Beauvoir, no seu O Segundo Sexo, analisando os mecanismos que mantêm as mulheres subjugadas , diz que "O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos". A máxima fica claro durante o livro. O pai de Kambili, que sofre com o racismo trazido pelos missionários, perpetua esse mesmo preconceito pensando que a cultura dos brancos é superior. Assim é a mãe da moça, que sofre com o machismo do marido, mas reproduz esse sistema de dominação masculina pensando que a mulher deve se sujeitar a todo tipo de absurdos para ter um casamento e filhos.


Hibisco Roxo é uma excelente leitura e, como a autora mesma diz, um livro para enxergarmos o perigo de se ter uma história única, uma única visão dos fatos. É desses que vou sair recomendando à exaustão. Leiam!


Chimamanda Ngozi Adichie -autora

sábado, 19 de dezembro de 2015

O homem é um animal político -comentando o De Gado e Homens, de Ana Paula Maia


Ana Paula Maia/ foto Marcelo Correa


"Quase uma hora depois, Tonho despeja um saco com pedaços gordos da vaca aos pés das mulheres, que precisam disputar com uma matilha de cães famintos que rodeiam o matadouro sempre que o forno do crematório é aceso. Eles agradecem e seguem de volta pela estrada repleta de sequidão e cães raivosos." (pág. 58)

De Gado e Homens, Editora Record 2013


O ser humano nasce com características intrínsecas, animalescas mesmo, e apesar de toda a cultura que muitas vezes encobre nossa natureza, continuamos sendo animais. E isso transparece em situações extremas.

De Gados e Homens é um livro sobre a rotina de um matadouro, dos animais e dos homens que lá trabalham, em especial Edgar Wilson. Ele é o protagonista cuja profissão é atordoador, função que consiste em dar uma marretada na cabeça do bicho para que ele siga para a degola. Gados, carneiros, porcos.. tudo se mata desde que gere lucro.

Desde o início fica claro que animais e homens são a mesma coisa. Estão na mesma condição. Muitos dos trabalhadores dormem amontoados no alojamento ao lado do cubículo onde se matam os animais. O teto do alojamento foi danificado e todos dormem ao relento, fazendo do alojamento uma continuação do pasto onde dorme o gado. O cheiro dos dois se mistura.

O lugar é miserável. Os moradores ao redor sofrem com a fome e percebe-se que se os trabalhadores no matadouro são o gado, os moradores são os abutres. Rondam o matadouro para carregar a carne dos animais que não sobrevivem. São atraídos pelo cheiro do crematório assim como os cachorros.



Ana Paula Maia/ foto Marcelo Correa

"Cumprido seu dever, ele vai para a cozinha do alojamento e frita os hambúrgueres. Com os colegas comem toda a caixa, admirados. Assim, redondo e temperado, nem parece ter sido um boi. Não se pode vislumbrar o horror desmedido que há por trás de algo tão saboroso e delicado." (pág 21)

Para existir uma vida, ela tem que se valer de outras vidas para não morrer. A vida se alimenta da morte. O homem se revela o predador em larga escala. Edgar Wilson, o protagonista, toma consciência disso e sabe que o trabalho que executa é cruel. Mas não há saídas pois o contexto sempre é relevante. Todos ali já são parte de algo muito maior. São peças que formam um todo já constituído.

De Gado e Homens é das melhores coisas que já li. Ana Paula Maia escreve de um jeito cru, rejeitando eufemismos. Suas influências são Dostoiévski, o cinema de Quentin Tarantino, dos irmãos Coen e Sergio Leone e leituras de Filosofia como diálogos de Platão, Schopenhauer e peças teatrais de Nelson Rodrigues.

Fiquei feliz em saber que uma escritora tão talentosa é mulher e negra, coisa rara de se ver no mercado editorial. 

Ana Paula Maia/ foto Marcelo Correa

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Feliz 2016 com bons livros

Fiz uma lista dos melhores livros que lembrei ter lido em 2015 e coloco aqui para quem talvez esteja necessitado de alguma luz no fim do túnel do mercado editorial. A ordem é aleatória e o único critério são livros de que gostei, que me tocaram de alguma forma. Há comentários e links com resenhas. Boa leitura.


A Infância de Jesus -J.M.Coetzee
Companhia das Letras, 2013 -romance-
Escrevi sobre esse livro AQUI.


Desonra -J.M. Coetzee
Companhia das Letras, 1999 -romance
Esse foi o melhor livro que li em 2015. Rendeu ao autor o Nobel de Literatura em 2003.


Travesti -Don Kulick
Editora Fiocruz, 2008 - antropologia-
Escrevi sobre esse livro AQUI.

A Trégua -Mario Benedetti
Folha de S.Paulo, 1960 -romance-
Escrevi sobre esse livro AQUI.


O Túnel -Ernesto Sabato
Folha de S.Paulo, 1948 -romance-
Assustador. Um mergulho na mente dos caras que assassinam mulheres que dizem "amar"



Olhos d'Água -Conceição Evaristo
Pallas Editora, 2014 -contos-
Escrevi uma notinha breve e bastante tímida sobre a Conceição AQUI.


Como Conversar com um Fascista -reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro- 
Marcia Tiburi
Editora Record, 2015 -artigos-
Uma compilação de artigos escritos sobre a influência dos afetos na formação das personalidades.
Uma excelente entrevista com a autora sobre o livro AQUI.


O Filho Eterno -Cristovão Tezza
Editora Record, 2007 -romance autobiográfico-
Relato cru sobre a convivência do Tezza com o filho, portador da síndrome de Down. Tão bonito quanto sincero.


Nossos Ossos -Marcelino Freire
Editora Record, 2013
Uma das maiores surpresas. Primeiro romance do Marcelino, que era conhecido por seus livros de contos.
A Marcia Tiburi fez uma resenha linda sobre o livro AQUI.


Faça Amor, Não Faça Jogo -Ique Carvalho
Editora Gutenberg, 2014 -crônicas-
Crônicas leves sobre relações interpessoais, uma delícia de ler.


Origem -Thomas Bernhard
Companhia das Letras, 1975-1982 -ensaio autobiográfico-
A Marcia Tiburi escreveu uma notinha breve sobre o Bernhard AQUI.

A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves
Companhia das Letras, 2013
Escrevi sobre esse livro AQUI.

A Hora da Estrela -Clarice Lispector
Editora Rocco, 1977
Uma das leituras mais bonitas e sofridas.
Trechinho da Clarice falando sobre o livro AQUI.


Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios -Marçal Aquino
Companhia das Letras, 2005 -romance-
Pra ser devorado. Muito bem escrito.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Caos, Noite e Morte. Comentando A Tristeza Extraordinária do Leopardo das Neves -Joca Reiners Terron.




Um crime é cometido dentro de uma seção noturna do zoológico da cidade. Um policial civil investiga o crime, enquanto uma criatura de hábitos noturnos vive escondida em um casarão e um taxista sádico instiga seus três cachorros rotweiller a atacar tudo o que vê pela frente. Esse é o enredo.

Na Teogonia, a Noite nasceu do Caos. E da Noite nasceu a Morte. O tempo todo durante a leitura eu pensava nesse tripé Caos, Noite e Morte, sobre os quais a história do livro se sustenta. E é por eles que analiso minhas impressões.

Caos: Não há linearidade. Entre fatos, depoimentos colhidos e acontecimentos presentes, o policial apresenta flashbacks de sua infância e juventude. O caos também se apresenta na estrutura psíquica dos personagens. Todos têm algum desvio de conduta, validando a máxima que de perto ninguém é normal. O cenário, o bairro do Retiro, é um lugar que recebe fluxos migratórios de bolivianos

Noite: A história quase toda se passa à noite. Principalmente porque a criatura, uma espécie de personagem principal, tem hábitos noturnos. Creio que por ser a noite propícia para acobertar o que temos de pior, os personagens não têm nome. E assim são tantas crueldades cometidas, que elas acabam virando hábitos impessoais.

pessoa com Porfiria


Morte: É um livro que fala muito sobre morte. Fala muito sobre uma doença chamada Porfiria, que é uma enfermidade "que deixa a pele extremamente sensível à luz, com o surgimento de bolhas, necrose da pele e gengivas, prurido, edema e crescimento de pelos em regiões como o rosto". Há constantes descrições da cracolândia, onde os usuários se aniquilam nos caximbos de craque, há personagem que abusa de remédios para suportar a vontade de dormir e trabalhar em turnos duplos.

É um romance criativo, algo próximo das fábulas que ouvíamos quando crianças, mantendo seu caráter assustador. Fala sobre nossos preconceitos e nossa dificuldade de lidar com o que é diferente. E principalmente sobre solidão. E apesar de ser tão escuro, há beleza em cada página.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Escrevendo para poucos. Comentando Erefuê, do Evandro Affonso Fereira



Um homem, que se casou com uma ninfomaníaca que o traía de várias formas possíveis pelo prazer do sexo, um dia não aguenta mais e mata um dos amantes da mulher. Enquanto aguarda o julgamento, vai tendo flashbacks de sua juventude e do próprio casamento. Esse é o enredo de Erefuê.

"Quando escrevo dou o máximo de mim. Nem sempre o leitor faz o mesmo. Para escrever um livro, leio muito. Não quero dizer que isso seja bom ou ruim, mas me dedico. Logo, o leitor também tem que ser dedicado. Estou sempre querendo dificultar a vida do leitor."

Com uma afirmação dessas, sabe-se de antemão que os livros do Evandro não são de fácil leitura. Sua escrita ganhou fama de hermética pelo estilo único desenvolvido por ele. É um estilo marcado pela oralidade e palavras arcaicas ou pouco usuais e períodos com uma estrutura interessante. Eu arrisco dizer que a escrita do Evandro não seria como é se não tivesse existido Guimarães Rosa. Referências mitológicas também aparecem o tempo todo.

A Literatura é a arte que usa a palavra como matéria prima. E Evandro sabe lapidadar. Em Erefuê, há a substituição de artigos por pronomes desnecessários ao longo de todo o livro: "saudade delas alfombras macias que minha avó tecia", "nunca mais notícia nenhuma dele meu primeiro amor". Claro que os pronomes desnecessários se tornam muito necessários para sua escrita bastante peculiar.

Há também o uso recorrente de onomatopéias e interjeições: "cabeça agora pendendo pro lado esquero pof pof pof batendo na fronte como quem tenta escoar sabe-se lá pensamentos funestos", "desisto apre cabeça latejando puh melhor jogar revistinha no lixo", o que cria uma sonoridade muito original aproximando a escrita da oralidade.

"Estava ficando doentio no começo. Eu ficava uma semana, um mês, para encontrar três palavras sonoras, uma aliteração que desse uma sonoridade. E estava ficando chato. Acho que o leitor também estava achando muito chato."

Apesar de encarar seus livros mais antigos como obsessivos demais, eu gosto dessa escrita do Evandro. Após cinco livos, ele usa menos essas construções, mas usa. Gosto da escrita como desafio e a dele não é só um recurso vazio. É fruto de um esforço genuíno para construir uma boa literatura. Dono de dois sebos que faliram pelo conteúdo excelente ("fali por excesso de qualidade. O pior que tinha nas estantes era Borges"), o autor reflete suas influências na literatura que produz. Só colocamos para fora aquilo que colocamos para dentro. E em tempos de livro como mera mercadoria, ele vai continuar sendo um autor de livros para poucos, mesmo com suas altas vendagens.

"Eu sempre escrevi pensando atingir poucas pessoas. Não se escreve para muita gente pesquisando mais de mil dicionários -africano, latino, etc, etc-. Não se atinge muita gente se ao invés de louco, falar zoró. E não contente com isso, falar zoroó, zoropitó. Eu comecei minha literatura me preocupando com a vida da palavra."


segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O ser humano é um devir. Minha resenha do livro Travesti, de Don Kulick



Travesti é um livro de antropologia, porém escrito para que qualquer pessoa leia. Don Kulick é antropólogo e para escrever esse livro saiu da Suécia e foi conviver por oito meses, 24h por dia, com as prostitutas travestis de uma região pobre de Salvador em 1997/1998. A diferença desse livro para o que sabemos sobre as travestis através dos veículos de informação é que Don Kulick despe-se do preconceito e resolve deixar com que as travestis falem por si.

O discurso que trata sobre as travestis no Brasil é viciado. Eles são os responsáveis pela construção da imagem de pessoas criminosas e extremamente perigosas que povoa o imaginário do brasileiro. Assim, foi uma surpresa para mim constatar que muito do que eu pensava estava bem longe da realidade.

Uma parte essencial na vida das travestis é o dinheiro. Elas são tão rejeitadas pública e constantemente, que acabam por tentar comprar o afeto de pessoas que ocupam um lugar importante em suas vidas. Geralmente as famílias que as expulsaram aceitam de bom grado os presentes e o dinheiro que elas mandam com a vida de prostituição. Recebem-nas quando elas fazem visitas. Mas cortam o contato se porventura esses mimos acabam. Os namorados são mantidos da mesma forma.

As relações com os namorados são complexas. Geralmente eles não trabalham e são sustentados pelas travestis, que não gostam nem que eles saiam de casa. E a relação dura enquanto durarem os presentes e o dinheiro dado para o uso de drogas. Se o incentivo cessar, o namorado acha uma travesti com uma oferta mais atraente. Aos nossos olhos, é uma relação abusiva por parte do homem. Mas na percepção das travestis, elas fazem isso porque gostam de estar no controle. São elas que mandam e se sentem donas de algum poder podendo bancar alguém. É como se pudessem dizer que tiveram sucesso na vida.

O conceito de gênero, de acordo como pensam as travestis, é bem fluido e varia pela forma como uma pessoa se comporta, principalmente na cama. O namorado de uma travesti pode até ser passivo para ela às vezes, mas depois disso ela vai perder o interesse por ele. Porque elas bancam um "homem", jamais outro "viado". Numa relação, a travesti não busca companheirismo nem satisfação sexual. Elas buscam gênero. Buscam se sentir "mulheríssimas". É um dos momentos em que elas emulam o gênero feminino. E os namorados falam de si mesmos como heterossexuais. E vêem sua relação com as travestis apenas como forma de obter algum lucro, materialmente. Pode até ter algum sentimento, mas é sempre secundário. Apesar das roupas "femininas", o corpo conseguido após aplicações de silicone industrial que muitas vezes dão errado, gestos e atitudes construídos, as travestis não se vêem como mulheres. Kulick deixa claro que elas são uma mistura do que pensam delas os essencialistas e os construtivistas.

Esses são apenas alguns fatos desse livro muito bem escrito. Foi lançado em 1998 nos Estados Unidos e a tradução chegou aqui em 2008. Continua atual e não esgota o assunto. Vale a leitura.


sábado, 15 de agosto de 2015

Náufrago

Paper Mache Boat -Ann Wood


O rapaz passou o café e tomou um gole. Não estava realmente com vontade. Apenas queria ficar acordado. Queria terminar o livro de poemas para a prova do dia seguinte. Lia as páginas desesperadamente enquanto umedecia o dedo na língua. Lembrou-se do livro O Nome da Rosa e ficou com medo de morrer envenenado pelas páginas dos poemas. É interessante como a paranóia nos acomete enquanto estamos sozinhos. Não somos completamente donos de nossos pensamentos. Somos também alteridade. Que desesperador.. Melhor pensar em outra coisa.

O rapaz fumou um cigarro. Não estava realmente com vontade, mas queria acalmar os nervos para conseguir se concentrar nos poemas. O cigarro não levou consigo a ansiedade, só deixou seu cheiro desagradável. O livro estava impregnado com o cheiro da fumaça de cigarros antigos. Como os cheiros carregam lembranças, as páginas lançaram no quarto um mundo inteiro repleto de passados. Reviver foi mais desagradável do que a própria fumaça.

O rapaz comeu um pedaço generoso de torta. Não estava realmente com vontade, mas sentia um vazio.. existencial, talvez. Já eram 4h da manhã e a madrugada solitária sempre acompanha a angústia. Ele nunca soube lidar direito com a solidão e não aguentava mais abrir redes sociais para não se sentir sozinho. Sua solidão não era saudável. Era  a solidão do abandono. E deixou-se abandonar nas páginas da Cecília Meireles. Chorou feito criança enquanto relia sem parar sobre o barquinho. O barquinho era metáfora para a sua vida:

"Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça."

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Fim da Vida

Dirt Road in Painted Desert -Jan Kronsell


Meus pés estão cansados da caminhada.
O poeta disse que é o processo divino que faz existir a estrada. Mas a poeira acumulada entre os dedos traz à baila a vontade de parar. Caminho longo, desânimo fadado. Mas se a estrada é divina o caminho não é uma escolha, é destino. É triste ser objeto das ações.

Não aguento mais. Sento no acostamento. Carrego minha tralha pesada, contendo a fome, a solidão e a saudade. Não jogo nada fora porque o fardo é parte de mim. Levanto, coloco a tralha nos ombros e prossigo. Cada vez mais devagar, os joelhos se dobrando mais a cada curva.

A boca seca e a tralha pesando como uma vida inteira nos ombros, tombo no chão e respiro o pó da estrada. Sabor amargo. O caminho sempre tem esse gosto quando sentimos a angústia de viver. Porque estrada é metáfora. A gente constrói. Só percebi isso no fim do caminho. Nosso trajeto não pertence aos deuses.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Poemas da Andrea Gibson (traduções)

Gosto da Andrea Gibson porque ela faz guerrilha com poemas. Seus escritos são muito generosos e ela declama muito bem. Ela não é muito conhecida por aqui, então decidi fazer algumas traduções. Vou postando aqui no blog.

BLUE BLANKET




Andrea Gibson -Manta Azul
(texto original em inglês aqui)


ainda
há dias
em que não há jeito
nem mesmo uma chance
em que eu arriscaria por um segundo sequer
uma olhada no reflexo do meu corpo no espelho
e ela sabe por quê
assim como eu sei por quê
ela só chora quando sente que está prestes a perder o controle
ela sabe o quanto o controle é válido
sabe o que uma mulher pode perder
quando seu poder de se movimentar
é levado embora
por um punho tão cheio de ódio
que poderia cortar as asas de deus
deixa as próximas oito gerações do seu sangue tremendo (de pavor)
e nessa noite, alguma coisa dentro de mim está se partindo
meu coração batendo tão fundo dentro dos lençóis da dor dela
eu poderia dar cada lágrima que ela chora
um ano-um nome
e um rosto que apagaria para sempre de sua mente se eu pudesse
assim como ela faria
por mim
por você
mas quanto estaríamos mais próximos da liberdade?
se até mesmo alguns de nós esquece
o que mulheres demais nesse mundo não podem
e estou pensando
que diabos você diria pra sua filha
sua filha de algum dia
quando tivesse que segurar seu lindo rosto
para a cara espancada desse lugar
que não aprendeu o significado de "pare"
o que diria pra sua filha
do útero vazio e estuprado
dos olhos fechados de tão inchados
as vísceras assustadas demais pra reter alguma comida
os milhões sobre milhões de corpos
usados e abusados
foram sete minutos do pior tipo de inferno
sete
e ela parou de acreditar em paraíso
a desconfiança se tornou sua lei
teme sua bíblia
a única chance de sobrevivência:
não confie em nenhum deles
tranque as portas de casa
coloque grades de aço nas janelas
caminhando em direção ao carro, sozinha
coloque as chaves na fechadura
por favor por favor por favor abre
como se já pudesse sentir
o laço de cinco dedos em volta de seu pescoço
noventa quilos de aversão
cavando túmulos no solo sagrado da sua carne
por favor por favor por favor por favor abre
você já está sufocando, lutando pra respirar
escutando o falho áudio da defesa
responda à pergunta
responda à pergunta
responda à pergunta senhorita
por que estou num julgamento por isso?
você falaria com sua filha, com sua irmã, com sua mãe desse jeito?
eu sou gerações de filhas, irmãs, mães
nossos corpos, campos de batalhas
território de guerras
sob as armas nas mãos de seus irmãos
você sabia que encontraram campos minados
na alma de mulheres deprimidas?
buracos negros em partes de seus corações
que uma vez cantaram sinfonias de criação 
luminosas como a luz na auréola do infinito
ela diz
eu lembro como o amor
costumava brilhar como luz na minha pele
antes de ele forçar sua entrada
agora todo toque parece pecado
que poderia crucificar medusa, kali, oxum, maria
me enterre em uma manta azul
para que o deus deles não saiba que sou uma garota
corte meus cachos
quero paz quando eu morrer
sua amiga bate à porta
já se passaram três semanas
você não acha que já é hora de sair da cama?
não
o ventilador de teto ainda lembra a respiração dele
acho que só preciso de mais alguns dias de descanso
por favor
feridas em seu joelho de tanto rezar pra esquecer
ela ouviu histórias de veteranos do vietnam
que ainda podem sentir formigar seus membros amputados
ela se pergunta quantas mulheres estão caminhando por esse mundo
sentindo formigar suas asas amputadas
se lembrando de como era voar
de como era cantar
hoje à noite ela não está se perguntando
o que ela contaria pra sua própria filha
ela a perguntaria
em quais deuses você acredita
eu construirei um templo de espelhos pra que você possa vê-los!
pegue a estrela mais brilhante com que você sonhou
vou te mostrar a luz em você
que fez esse sonho virar realidade!
hoje à noite ela não está te perguntando
o que você diria pra sua filha
ela é a vida nas profundezas do inferno -a chacina
já morreu milhões de mortes
com cada respiração insegura
milhões de túmulos em cada poro de sua carne
e ela sabe que a guerra não terminou
sabe que há mais sangue por vir
sabe que está longe da única mulher ou garotinha
confiando nesse mundo não mais do que as mãos
confiam em arames farpados enferrujados
ela era inteira antes daquela noite
acreditava em paraíso antes daquela noite
e ela não é a única
ela sabe que não será a única
ela não está perguntando o que você vai dizer pra sua filha
ela está perguntando o que você vai ensinar pro seu filho.







I DO




I Do -Eu Aceito

ba bi di ba ba bi di ba ba ba bi ba bi di ba
ba dang a dang dang a dingy dong ding
Eu aceito eu aceito eu aceito
dip da dip da dip
Eu aceito eu aceito
dip da dip da dup
ba bi di ba ba bi di ba ba ba bi ba bi di ba
ba dang a dang dang a dingy dong ding

Eu aceito......

Mas os idiotas dizem que não podemos

Porque você é uma garota
e eu sou uma garota... ou pelo menos algo parecido
então o melhor que podemos esperar
é uma união civil em Vermont
e eu quero sinos de Igreja.
Eu quero rosários.
Eu quero Jesus de joelhos.
Quero andar pelo corredor da Igreja
sentindo o patriarcado sorrir.

Isso não é verdade.

Mas eu quero sim
passar minha vida com você.
E eu quero saber que daqui a 50 anos,
quando você estiver num quarto de hospital se preparando pra morrer,
quando o horário de visitas for só para membros da família,
Eu quero saber que vão me deixar entrar
para dizer adeus.

Porque passei cinquenta anos
memorizando a maneira como as linhas abaixo dos seus olhos
formam rios quando você chora,
E eu mantive minha mão como um oceano no seu queixo
dizendo "Meu bem, pode fluir pra mim..."
porque por cinquenta anos eu assisti você crescer comigo.

Cinquenta anos e você nunca se desapegando de mim
através dos sonhos e dos pesadelos
e tudo o que vem entre eles,
desde o dia em que eu disse "Me compra um anel,
me compra um anel e eu tornarei meu dedo verde
para que eu possa imaginar que nosso amor é uma floresta.
Eu quero me perder em você."

E eu juro que cresci como uma flor silvestre
A cada hora desses cinquenta anos que passei com você.
E isso não é dize que não tivemos dias ruins.
Como no dia em que você disse "Aquela moça do caixa foi tão gentil."
E eu disse "Eu queria COMER aquela moça do caixa."
E você disse "Meu bem, isso não foi engraçado."
E eu disse "Meu bem, talvez você deveria aceitar uma merdinha de uma piada
de vez em quando."

Então naquela noite eu dormi no sofá.

Mas quando amanheceu você estava sorrindo.
Sim, houve épocas de altos e baixos pra nós
Mas eu nunca precisei de nada mais que as estrelas na sua pele
para me guiarem para casa.
Por cinquenta anos você foi meu poema favorito.
E eu te lia toda noite
sabendo que talvez eu nunca entenderia todas as palavras
Mas estava tudo bem porque suas linhas
foram a coisa mais próxima do sagrado que já ouvi.
Você disse "Esse tipo de amor tem que ser verbo.
Estamos pintadas em lona escorregadia.
Vai precisar muito para fixar,
Mas se isso acontecer, seremos uma obra de arte."

E nós fomos.

Desde o começo vivendo em cidades
que franziam as sobrancelhas para nossas mão dadas,
e nós dobrando seus olhares como notas de ódio dentro de nossos bolsos
para que pudéssemos fingir que eles não estavam ali.
Você disse "  'Temer' é só um verbo se você permitir que assim ele seja.
Não ouse largar a minha mão."
Essa foi a minha fala favorita.

E no dia em que vimos dois caras se beijando
numa rua no Kansas,
E nós disparamos a chorar,
porque era no Kansas e você disse,
"Quais as chances de ver
algo além de plantações de milho no Kansas?!"

Nós nascemos de novo naquele dia.
Eu cortei seu cordão e você cortou o meu,
E os acordes do tempo tocaram esperanças,
como se pudéssemos sentir desafrouxar o laço do ódio.
Desafrouxando anos de "pessoas como vocês não são bem-vindas aqui.
Pessoas como vocês não podem trabalhar aqui.
Pessoas como vocês não podem adotar".
Então nós tivemos muitos gatos e cachorros
e uma vez até um casal de macacos
e você ensinou a cantar "hey, hey, we're the monkeys"
Você era doidinha desse jeito.
E eu era doida por você.

Nas noites em que você não conseguia dormir
eu ficava acordada por horas contando carneirinhos pra você
E você reescrevia o ritmo do meu coração
com seu jeito de me abraçar pela manhã,
descansando sua cabeça em meu peito,
e eu juro que meu hálito se tornou cinza no dia em que seu cabelo assim ficou,
como eu juro que cresceram flores em minhas pálpebras
na primeira vez que te vi
e elas floresceram na primeira vez em que te vi dançar
na nossa sala ao som da chaleira na cozinha.

Num mundo que poderia ter nos endurecido feito metal,
nós amolecemos juntas feito nostalgia.
Por cinquenta anos nós emplumamos asas grandes demais para serem atacadas
E voamos por dias fortes ou frágeis como castelos de areia
Lá no alto.
E você dobou seu amor num vaga-lume de origami
E o jogou em meus caminhos até que meus cantos mais escondidos
estavam repletos de lanternas
Agora cada poro, cada porta do meu coração está aberta por sua causa.
Por nossa causa.

Então eu aceito, aceito, eu aceito.
Quero estar naquele quarto com você.
Quando o horário de visitas for somente para membros da família,
quero saber que me deixarão entrar.
Quero saber que vão deixar você me abraçar
enquanto eu canto:

ba bi di ba ba bi di ba ba ba bi ba bi di ba
ba dang a dang dang a dingy dong ding

Estou tão apaixonada
Meu bem, estou tão apaixonada por você

ba bi di ba ba bi di ba ba ba bi ba bi di ba
ba dang a dang dang a dingy dong ding

Adeus.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

O Mensageiro

Black Box -Ad Reinhardt


Profissão: mensageiro. De casa em casa, lar em lar. Caminhando. Anda, ligeiro. Não sabe reter, só sabe entregar.Tem dificuldades em segurar por muito tempo, como água que rasga as brechas das mãos fechadas e escapa-lhe por entre os dedos. É um cumpridor de ordens.

As mais variadas coisas passam por suas mãos. Desde as mais insignificantes até as coisas mais generosas que uma pessoa pode oferecer. Assim surgiu o dilema: como tornar a vontade de ser feliz maior do que a vontade de dever cumprido?

Decidiu ficar com o amor dentro de uma caixinha preta. Colocou no lugar a morte dentro de um invólucro colorido, sem remorso algum pelo destinatário. Pediu demissão e lá se foi. E foi. Foi feliz.

sábado, 23 de maio de 2015

Tudo Nada

Tenho o nada à disposição
Tudo está contido no nada
Os dois são iguais
Estão apenas em margens opostas
Me encontro no meio
Flutuando
E fujo sempre que estou no limiar

terça-feira, 12 de maio de 2015

Carpideiras

Iansã


O relâmpago lançou um clarão no breu
Chegou silencioso, se anunciou e se perdeu
Assim como eu depois de horas a me procurar
Vasculho fundo na consciência
Ainda não sei responder
Quem sou eu?

Os olhos piscam pedindo luz
Mas só há escuridão
Os pés tateiam hesitantes
Testam a firmeza do chão

Rezo a Santa Bárbara
Venha, me conduz
Me dirijo aos orixás
Iansã, minha amiga, me reconduz

Peço sabedoria, quero forjar destino
Quero me achar ou me perder no processo
Mas me religar ao divino

Religião, do latim religare
Divino, a partícula que em mim permaneceu
Em meio a tudo o que é fosco ainda brilha
Continua imaculada, não se perdeu

Não se perdeu
Como um pedacinho do sol aqui dentro
Guardei dentro do peito
Inocência remota, não esquecida
Que o pecado foi engolindo desde o leito

Venha Santa Bárbara, venha Iansã
Rainhas dos raios
Me peguem pela mão
Enquanto ainda guardo esse resto de pureza
Venham luzir sobre minha partida
Sejam minhas carpideiras
E tomem, pois, minha vida

sábado, 2 de maio de 2015

A Velha e o Menino

Old Lady With Black Cat -Herbert Johnson Harvey


Ela lhe disse que envelhecer é privilégio. Sempre o esperava na varanda, a xícara de chá em cima do pires no colo. Quando o via dobrar a esquina, andava o mais depressa que podia e pegava a latinha de coca na geladeira. A nova geração não tem paciência pra esperar a infusão liberar seu sabor. É tudo imediato. O gosto vem do simples quebrar do lacre.

Ela, do alto de seus 80 anos, julgava saber tudo sobre a vida. Mas aquele garoto mostrou-lhe que há ainda um mundo a ser descoberto. Um mundo de inocências que também tem muito a ensinar.

Em meio às bebidas, a dela quente e a dele fria, ele lhe contava sobre as dúvidas de ser criança, e tinha sede de sua filosofia. Tinha medo de Deus e queria saber sobre esse ser que protege todo mundo. "E quando é que ele dorme? Será que é aí que as tragédias acontecem? Quando Ele cochila sem querer? É um trabalho difícil e meio chato. Eu não queria ser Deus". Ela sorria. Ouvia tudo para depois comentar.

Ele dizia que queria namorar a Luiza porque ela é bonita. E o amor é bonito, como nas novelas. Mas temia não ser correspondido.

Ela lhe ensinou sobre a sabedoria do mundo. Disse-lhe que gostava da conversa com ele porque  conhecimento não é válido se não for compartilhado. Contou a ele sobre o Zaratustra do Nietzsche, que não achava que o sol seria feliz se não houvesse aqueles sobre quem brilhar. O garoto não entendeu tudo, mas gostava de metáforas.

Ela lhe disse que aprendeu com a vida que deus não existe, mas ele era livre para acreditar no ser que quisesse. E se ele fosse acreditar, que não colocasse toda a carga sobre os ombros de deus. Ele era somente o sopro inicial, o fôlego de toda a vida. Nada mais. Ela achava que o mundo não precisava mais de deus. Precisava de mais poesia. "Você pode não acreditar mais em deus, mas jamais deixe de acreditar na força de um poema". E lia para ele uma poesia do Quintana.

Contou-lhe sobre o amor na Filosofia: o amor é o sentimento que une as coisas, enquanto o ódio é o sentimento que separa. Mas que ele não se preocupasse, porque o amor era complexo e muito raro entre amantes. O que ele sentia talvez nem existisse mais daqui a algum tempo. E lia para ele uma poesia da Florbela Espanca, para que ele soubesse que o amor também pode ser doloroso, “não leve tudo a ferro e fogo”.

Ele escutava com a avidez de um aluno. Queria ser sábio como a velha um dia. Ela queria ser um pouco ingênua como o menino às vezes.

Eles sempre se despediam num abraço apertado como se fosse o último. E quando chegou o último abraço de fato, ele não teve como saber que era o derradeiro. Voltou da escola e encontrou a casa vazia. Já tinham levado o corpo da velhinha tão querida.

Queria que ela permanecesse viva, assim como estava agora em sua memória, segurando a xícara de chá entre as pernas. Então cuidou de seu jardim que só tinha natureza morta. Plantou gardênias, porque era a música que ela gostava de escutar no rádio. Achou que as flores tinham a cor da saudade. A velha ficaria orgulhosa.

A casa nunca mais foi habitada. E ele também não quis mais entrar naquele lugar. Não queria macular as lembranças que ali guardava. Então até ficar velho cuidou do jardim, incansavelmente. E imaginava as flores vivas à espera da sua figura dobrando a esquina, como uma velhinha.

sábado, 11 de abril de 2015

A Infância de Jesus, sobre o livro de Coetzee



Um amigo veio me perguntar o que eu havia lido do Coetzee. Respondi "nada ainda" e recebi o espanto: "como assim você ainda não leu Coetzee?!". As palavras aqui não abarcam o nível de espanto nem a interjeição que antecedeu sua surpresa. Foi embora recomendando fortemente o autor, que eu já queria ler há algum tempo desde que li um texto muito bonito sobre o livro Desonra. Comprei o livro e li em pouco mais de um dia. Deixo aqui minhas impressões e algumas referências que me vieram à mente durante essa leitura tão gostosa.

Sobre A Infância de Jesus (Companhia das Letras, 2013), o próprio Coetzee fez um comentário curioso na Universidade de Cape Town: "Eu esperava que o livro aparecesse com uma capa em branco e um título igualmente em branco para que somente após a última página lida, o leitor encontrasse o título, isto é, A Infância de Jesus. Mas na indústria editorial, como ela se apresenta hoje, isso não é possível" -tradução livre-. Gostei muito, mas como bom cético, não vou entrar nos méritos da vida de Jesus. Aproveito somente a idéia da suspensão do título, que achei genial.

O livro começa com um grupo de pessoas que chegam de barco à cidade de Novilla. A essas pessoas foi dada uma nova chance de viver, que elas aceitaram, tendo de pagar na aceitação o preço do esquecimento da vida passada. Vamos conviver com Símon e David. Símon, homem de meia idade, resolve tomar para si a responsabilidade sobre o menino David, que quer muito achar seus pais. Ele diz que trazia consigo uma carta, e que lá havia o nome dos pais, porém a havia perdido.

Símon fica espantado ao perceber que ninguém na cidade se preocupa com o passado. Para eles, a vida passada é mesmo passada. Veio-me à cabeça o Mito de Er, da República de Platão, em que as almas têm de beber da água do rio Lete (esquecimento) e os sábios bebem pouca água, esquecendo menos e não tendo de repetir os mesmos erros na próxima vida. Fiquei sensibilizado por Símon. A curiosidade dele é mais profunda. Ele quer saber o que houve em seu passado, enquanto o menino quer saber de onde veio. Os dois têm curiosidade pela origem. Apenas viver não basta. E se já vivemos isso que está sendo vivido?

Símon e David sentem muita fome. Ficam frustrados com a falta de variedade. É sempre pão e água para comer e beber. Aí me lembrei da autobiografia literária do Bartolomeu Campos de Queirós -Por Parte de Pai, RHJ 1995-, em que ele conta que sentia uma sede durante as madrugadas de sua infância. O pai não trazia água, apenas vinha, colocava as mãos em concha na frente de sua boca e ele sorvia o nada. Claro que o nada na verdade era afeto. Ele sentia uma sede de afeto, assim como Símon e a criança. Símon chega até a ter relações sexuais com uma mulher que conhece. Mas a sede não se vai. Sexo não alcança a profundidade da necessidade afetiva que ele sente. Um belo retrato de muitos de nós.

O personagem segue montando seu destino, arruma um trabalho braçal, na estiva, e começa a sentir o peso da vida. Ele não entende o porquê de ter aceitado uma nova chance de viver. Começa a questionar o sentido da vida e aceita que achar a mãe do garoto talvez cumpra esse papel. Mas depois quer mais. Dialoga com as pessoas ao redor, que apesar de estudarem filosofia não enxergam um sentido para a vida além do trabalho. Se o trabalho é carregar sacos de grãos nas costas para que a população possa comer pão, que isso seja o suficiente. Ainda que estejam também sustentando os ratos do galpão onde tudo é armazenado. O trabalho não locupleta a vida e Símon permanece vazio, longe de se saciar de sentido.

O livro é uma bela reflexão sobre o estar vivo. Será que faz sentido? Penso que a vida não tem sentido algum. Mas aí se encontra a chave. A vida é invenção, e por ser invenção cabe a nós construir seu sentido. Podemos criar e recriar sempre que não gostamos do resultado. O autor, pude perceber com felicidade, trabalha essa idéia ao longo do livro. Achei tudo muito belo e fiquei emocionado com o resultado. Coetzee é daqueles autores que valem muito mais do que o preço que as livrarias estabelecem para seus livros. Comprando um livro dele, sempre lucramos sobre essa indústria editorial.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Correndo com os Lobos

Na charneca, respiro a vida que vai se acabando, a longevidade ficando rarefeita.
Em meio ao verde, a morte corre ao lado, alcateia de fome.
Mato pra não morrer, mostro os dentes pra me agarrar à vida.
Enquanto isso a terra me come.

domingo, 22 de março de 2015

A Trégua, sobre o livro de Mario Benedetti



Sou o tipo de leitor que não se contenta somente com a leitura. Tenho que ter uma relação física com o livro. Gosto de pegar, girar, ver cada canto, cheirar as páginas com cheiro de livro novo ou cheiro de livro guardado, alisar. Talvez  por isso eu nunca tenha gostado de livros digitais e espero nunca precisar usar.  Dizem que cada leitor tem seu ritual, e eu tenho os meus.

Esse livro estava na minha estante há bastante tempo. Ele era preterido sempre que eu iniciava uma nova leitura. Acho essa coleção Literatura Ibero-Americana, da Folha, muito bonita e com excelentes obras. Mas de alguma forma a capa desse título em especial nunca me atraiu. Essa imagem nunca me tocou.

 Assim, um dia senti uma decepção muito grande com um livro da Veronica Stigger, que tem uma arte fantástica e achei que me agradaria muito. Não consegui nem terminá-lo e coloquei de volta na prateleira, ao lado de A Trégua. O livro me olhou com olhinhos de mendigo. Creio que quem lê entenderá essa metáfora. Resolvi dar uma chance e valorizar-lhe a coragem, já que ele se colocava à prova tão destemidamente.

Fiquei encantado com Matín Santomé, personagem central e narrador do romance, que é feito em forma de diário escrito pelo próprio Martín. Creio que todo leitor gosta de imaginar que os personagens mais queridos realmente existem em algum plano. Eu sou assim. Achei Martín muito simpático e bastante sofrido (sempre tenho um carinho especial pelos sofridos). Espero que ele esteja por aí em algum lugar.

O diário nos dá a dimensão do peso da rotina vivida por esse homem de "meia idade", perto dos 50 que está prestes a se aposentar e sente um misto de expectativa e desespero ante a possibilidade do ócio. O que fazer com o tempo que ele finalmente possuirá para si?

Ele fala com muita sinceridade no diário, como poucas pessoas ousam falar para si mesmas. A família aparece aos poucos, vai sendo pintada devagar. Ele possui três filhos mas não sabe lidar com a distância deles. Sente a ânsia de comunicação, mas percebe que o tempo para fazê-lo já se foi. Sua oportunidade passou há muito. Teve de criá-los a maior parte do tempo sozinho, porque a esposa morre logo quando o terceiro filho nasce.

A esposa ocupa um lugar especial porque ele luta para reter consigo uma lembrança dela que não pertença a mais ninguém. Parece que tudo o que lembra dela é pastiche de lembranças dos outros, como se ele fosse um artista ladrão de obras alheias. A única memória que lhe resta é a tátil. Lembra do que toque em sua pele, em suas coxas, mas não é capaz de lembrar seu rosto. Os filhos parecem lutar igualmente com as lembranças. Em uma passagem muito bonita, Blanca, a filha, diz à mesa de jantar: "às vezes me sinto infeliz, só por não saber do que tenho saudade". Sofre por não se lembrar.

A rotina já pesa muito quando aparece no escritório uma mulher que vai mudar a vida de Martín. Uma mulher muito comum, que aos poucos vai se destacando dos demais comuns à volta, como sempre acontece quando gostamos de alguém, pois o sentimento é sempre construído. Essa mulher vai aos poucos dando cor ao cotidiano que estava cada vez mais cinza. Ele começa a repensar suas idéias em relação à família e a deus, com quem sempre teve uma relação conflituosa.

Mais não posso dizer porque penso que quem me lê vai dar uma chance ao livro.

ps: durante a leitura, eu não conseguia deixar de pensar na música Roda Morta, do Sérgio Sampaio, que conta sobre a "sordidez do conteúdo desses dias maquinais". É a vida do trabalhador que encara todos os dias o desbotamento da vida. Vale a pena ouvir:
















quinta-feira, 5 de março de 2015

Me Entregue Quando Eu Me Esquecer De Mim

Manfred Kielnhofer -esculturas


Gosto da simplicidade de um cachorro vira-lata. Cachorro de raça é arrogante. Ele sabe que vale dinheiro. Enquanto o vira-lata só pode contar com olhinhos de pena como moeda de troca.


Gosto de aliterações. Leio-as como quem saboreia um prato fino, lentamente. Com os sons repetidos brincando na língua e nos dentes como quem aprende o bê-a-bá.


Gosto quando alguém me chama por um apelido secreto, criando um companheirismo  que beira a cumplicidade. Sempre me ganha.


Gosto de escrever sobre a morte enquanto ela não vem.


Gosto da carga de solidão que a escrita exige. A urgência que a palavra pede na hora de ser escrita é egoísta. E eu sempre cedo.


Gosto de acordar e imaginar que vou morrer naquele dia. Gosto de viver como quem está sempre de partida.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Máquina de Fotografar Sombras

Black & White Fluid Painting -Mark Chadwick

Comprei uma câmera pra fotografar sombras. 
Me interessa muito mais o vai-e-vem de quem é furtivo, de quem escapa do olhar e fica sempre em segundo plano.
Comecei a fotografar as sombras enquanto elas estavam distraídas. 
Não é fácil. São tímidas e se escondem até à noite.
Entre um click e outro, lembrei de um amigo que passou a vida sendo sombra de si mesmo e dos outros. 
Não possuía vontades ou cedia sempre à vontade dos outros. 
Cresceu como os outros queriam, estudou o que os outros queriam, arrumou o trabalho que os outros queriam.
Se casou com uma pessoa que é seu oposto, como geralmente acontece. 
Ele foi desaparecendo aos poucos, sombra que era, e chegou o momento em que eu tirei-lhe a foto. 
Sua figura desvanecia, como se estivesse em uma pintura velha, e estava cada vez mais parecida com vapor. 
Até que chegou o dia em que ele desapareceu.
Espero que ele encontre a si mesmo algum dia.
Coloquei sua foto entre meus catálogos e parei de fotografar.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Não Conheço Sua História

Ela caminhava de madrugada. Gostava do silêncio enquanto fumava seu cigarro.
Parou pra uma conversa com o mendigo, que lhe pediu um trago.
Como de costume, subestimou aquele homem maltrapilho." É só mais um vagabundo".
Mas ele falava das coisas que não se vê. Sem dinheiro, ele aprendeu sobre o que não tem valor.
Contou a ela que às vezes dói.
"Mas onde dói, moço? Você se machucou?"
Ele disse que não. Às vezes dói aqui dentro mesmo. Como Macabea, sabe?! Dói ver a vida passar e a ela não pertencer.
Ela não soube se foi pela referência a Clarice Lispector, ou pela beleza das palavras, mas percebeu que aquele homem era grande.
Achou pouco lhe dar dinheiro, então lhe deu um abraço.
O homem sorriu, um sorriso sem dentes. Mas era exatamente o que ela queria: compreensão.