Amor (Amour) França/Áustria, 12. Direção e roteiro de Michael Haneke. Com Jean Louis Trintignant, Emmanuelle Riva, Isabelle Huppert, Alexandre Tharaud, William Shimell, Rita Blanco. 127 min.
O filme Amour perturba por tratar de temas delicados, dentre eles a velhice. A cena inicial é uma senhora morta deitada em uma cama, encontrada por policiais que invadem a casa. Já sabemos de antemão que não é um filme com final feliz. Anne (Emmanuelle Riva) e Georges (Louis Trintignant) são um casal de músicos aposentados que moram em um apartamento em Paris. Os dois, idosos, são muito ligados um ao outro e vivem uma vida confortável -e aparentemente feliz- até que, em um incidente à mesa de café, Anne não reage a estímulos externos. É o início da derrocada dos dois.
Anne pede a Georges que nunca mais a deixe em um hospital, e é peremptória no pedido, levando-o a seguir à risca os desejos da mulher até o fim de sua vida. Ele passa a cuidar dela com extrema diligência, e nesse ponto não há como não lembrar de: "na saúde e na doença, até que a morte os separe". Percebe-se que, nesse casal, um é parte integrante do outro. O que afeta um, afeta o outro de forma simétrica. À medida que o estado físico dela vai se tornando precário, em decorrência de um derrame que paralisa o lado direito de seu corpo, o estado mental dele vai se tornando delicado em igual medida, até que corpo e mente de ambos já são um todo danificado. Ela vai perdendo a vontade de viver aos poucos, enquanto ele enlouquece tentando trazê-la de volta à vida que esvai. Em uma cena, num ato de desespero, ele lhe dá um tapa na cara por ela se recusar a beber a água que ele lhe oferece. Ali ele extravasa todo a angústia recalcada, por não ter com quem conversar -nem com sua filha, personagem secundária, ele pode contar- e por ver a mulher, e a si mesmo, desvanecendo pouco a pouco. Interessante perceber que Hanecke não nos dá motivos suficientes para gostar de Anne. A consequência é que ficamos chocados com o tapa, mas não por partilharmos de algum afeto pela mulher, mas sim por constatarmos o grau de miserabilidade a que chegou a existência dos dois.
Haneke tem formação em psicologia e filosofia e isso transparece em seus filmes. Se em A Fita Branca ele trabalha com a lógica do proibido (link para o texto da filósofa Marcia Tiburi no final), em Amour ele trabalha com a lógica da incomunicabilidade. O filme é repleto de silêncios, seja nas cenas em que não há som, seja nas cenas em que os personagens dialogam mas não há entendimento. O silêncio também implica o isolamento imposto pela velhice, representado pela filha que a princípio não consegue entender os pais -cena em que ela os visita mas só fala de investimentos financeiros-, e pelo músico ex aluno de Anne, que os visita, mas claramente se mantém afastado e temeroso de conhecer mais sobre o estado precário dos dois. Mais tarde, ele lhes envia um CD, que Anne não mais suporta escutar, pois os sons a lembram do passado em que ela era capaz. Ela prefere, assim, o silêncio como forma de se isolar do passado e das pessoas que nele havia.
A loucura de Georges e a debilidade de Anne atingem tal ponto que a vida se torna, para os dois, um fardo muito pesado para se carregar. Ela já não quer mais viver e acaba tragando ele para o mesmo ponto de desistência da vida. Nesse ponto, Georges mata Anne sufocada usando os travesseiros e o peso de seu corpo, corpo que já é fardo pesado, assim como a vida. Ele a mata numa cena que não é sombria, mas repleta de luminosidade. Fica a impressão que era esse o desejo de Anne também, por ser ela já incapaz de tudo, até de por fim á sua própria vida. Não conseguimos nem ficar com raiva de Georges por esse ato. Hanecke nos faz sentir uma empatia por ele que gera uma solidariedade doentia, nos deixando incapazes de um sentimento de revolta. Hanecke entende bem o conceito de catarse aristotélica, nos purificando pela percepção de que somos apensas humanos, sujeitos a pulsões e capazes de atos dos quais não nos orgulharemos.
Um ponto importante do filme é a figura de um pombo. Enquanto Georges luta para trazer Anne de volta à realidade, o pombo aparece e ele o afasta, colocando-o para fora da janela. Mas quase no final do filme, depois que Anne já está morta, o pombo reaparece e ele o aprisiona e faz carinho nele, num gesto claro de aceitação. O pombo cinza, na simbologia, é tido como o negativo, o funesto (coloco um estudo sobre o pombo(a) dentro da simbologia no final). Essa visão se aplica também à morte, que é vista como algo ruim e contagioso. Pode-se entender que Georges, ao abraçar e acariciar a pomba, aceita a morte dele e a da mulher, pois Georges está louco e imagina sua mulher saudável mandando ele se arrumar para que eles saíssem de casa. O processo todo da doença da mulher também foi um processo de doença de Georges. Ele enlouquece. Alguns dirão que Georges na verdade se matou e a cena em que o casal sai de casa, na verdade representa as almas deles, que se reencontram. Esse conceito traz uma conotação muito cristã, confortante demais para que eu possa confiar nele. Hanecke não é famoso por fazer filmes de finais confortantes ou felizes.
Por fim, há a última cena em que a filha do casal entra na casa e senta-se numa cadeira. Algumas pessoas não entenderam por que ela não vai procurar os pais. Ora, essa cena representa o depois de tudo. O corpo da mãe já foi retirado da casa e o pai já está vagando, louco, pelo mundo.
*Texto de Marcia Tiburi sobre o filme A Fita Branca, de Hanecke: http://www.forademim.com.br/site/2012/09/a-fita-branca-de-hanecke-por-marcia-tiburi/
**Texto do estudo sobre o pombo(a) dentro da simbologia: http://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/9843/5680
Guilherme, adorei seu blog!
ResponderExcluirBeijos.
http://poeiradebau.blogspot.com.br/
Belíssimo texto, Guilherme. Você levantou e explicou questões que muito me perturbaram. Me tirou o peso de não ter entendido a simbologia do pombo. Well done!
ResponderExcluirOra, obrigado!
ResponderExcluirEssas mensagens me motivam.
muito.
Quem agradece sou eu.
Adorei o Blog e vou gravar em minha mente o nome deste diretor, para não assistir mais a filmes assim, o filme é bom e bem dirigido, mas nao gosto do estilo e se nao fosse este blog eu não entenderia o que aconteceu, assim como a maioria das pessoas que foram ao cinema, no final da sessao não entenderam nada!
ResponderExcluirObrigado Riane!
ResponderExcluirGosto de ter ajudado na compreensão do filme.
Quanto ao diretor, dê a ele mais uma chance. Assista "A Fita Branca", se puder. O cara é bom, sério!
Olá, Guilherme! Foi uma das melhores críticas que pude ler sobre o filme. Não conhecia o Haneke, sou nova no mundo dos filmes estrangeiros. Já estou com vontade de ver outros!
ResponderExcluirUm abraço!
Obrigado, Raquel!
ResponderExcluirSinta-se à vontade para voltar quando quiser.
Se quiser aceitar uma dica.. assista A Fita Branca ou Caché. São ótimos também!
muito bom ler seu blog, eu sair do filme completamente sem entender o final..me recusei a acreditar que Georges matou Anne, como de fato, ainda estou sem acreditar.
ResponderExcluirFico feliz pela visita!
ResponderExcluirEu também fiquei muito atordoado quando ele a matou. Foi um choque, principalmente pra quem acha que a vida é bela.
Obrigada por me esclarecer vários pontos do filme.Mas se o marido morreu tb pq ñ mostram???
ResponderExcluirOi Christie!.. Seja bem-vinda.
ResponderExcluirBom, esse ponto o diretor deixou em aberto.
Eu prefiro pensar que o marido não morreu, mas ficou louco e está por aí, vagando pelo mundo.
Mas há quem ache que ele morreu, sim.
Abraços!
Olá Guilherme. Li e gostei muito do seu texto. Foi muito esclarecedor, pois havia muita névoa sobre a conclusão e não conseguia entendê-la e agora vou procurar os outros que recomendou, A Fita Branca ou Caché.
ResponderExcluirGuilherme, gostei bastante de sua análise.
ResponderExcluirEm meu ponto de vista, os dois estavam mortos dentro do apartamento no momento em que os bombeiros chegaram, mas o foco principal foi mostrar somente Anne. A cena dos dois saindo de casa foi já um encontro dos dois em um outro plano (muito romântica minha conclusão??!!) E realmente aquela filha sem noção foi mostrada pós-tudo...foi isso mesmo? Adorei trocar ideias sobre Amour, obrigada.
Olá, Densise!
ResponderExcluirComo você bem apontou, "o foco principal foi mostrar somente Anne". Justamente por isso tendo a acreditar que Georges não morreu e a cena dos dois saindo de casa juntos é apenas fruto da degeneração mental que ele sofreu. Ele saiu vagando sozinho pelo mundo. Mas a sua interpretação é legítima, visto que estamos apenas lançando conjecturas.
Quanto à filha, concordo com você. Aquela cena no final é quando tudo já terminou.
Eu que agradeço a oportunidade de diálogo e por ter se dado o trabalho de comentar no meu texto. Gosto muito.
Um abraço!
Grata pela análise em seu blog. Ajudou -me a "digerir" melhor esse filme perturbador.
ResponderExcluirOra, eu que agradeço a sua visita. Volte sempre!
ExcluirMuito bom, definitivamente o melhor texto que li sobre o filme.
ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirFeliz por ler seu texto e poder entender melhor o filme. Tive dificuldades em compreender a simbologia da pomba e, também no final quando ele se levanta, cambaleante, e sai com a esposa. Tive a visão que ele também morreu, não que tenha encontrado a alma dela, mas que foi uma forma de dizer que ele também estava morto, entretanto, gostei desta outra perspectiva que acredito está mais conectada ao filme.
Li várias críticas ao silêncio do filme, as poucas falas mas, penso que foi exatamente isto que quiseram retratar, a exclusão na velhice, pouco contato com amigos, familiares e sociedade. Minha família tem muito idosos e vejo claramente este isolamento social. Triste, porém, verdadeiro.
Olá, Comento bem tardiamente, porém só hoje vi o filme !
ResponderExcluirPenso que a cena do Pombo denota o peso da solidão, da vida vazia que já era vivida naquela casa. O pombo insiste em entrar como faz em edificações abandonadas, sem vida!
Haneke é um mestre em deixar seus expectadores refletindo sobre o final do fime, nem sempre muito claro e repleto de possibilidades!!
Abraço.
Também so tive coragem de assistir ao filme hoje, depois de mil anos no PC haha Não creio que o marido tenha ficado louco e saído de casa. Se ele saiu durante um devaneio, não teria fechado a porta, e de fato aparece os dois saindo e deixando a porta aberta. Portanto, não haveria razão para os bombeiros terem arrombado a porta e só chegado quando o corpo estava num estágio avançado de decomposição. Estranhei, porém , a ausência de pistas quanto a o que foi utilizado para o suicídio. Outro indício do suicídio são as cartas que ele escreve, o que evidencia que ainda há raciocínio, e se há, acredito que com certeza ele teria planejado seu suicídio.
ResponderExcluirEu achei que a cena que ele lembra da esposa falando para ele pegar o casaco era de quando eles estavam indo para o concerto logo no início do filme, como se ele lembrasse desse momento em que eles ainda estavam funcionalmente bem para a idade e felizes. Tenho minhas dúvidas se ele acabou vagando pelo mundo, quando ele escreve as cartas eu tive a impressão de que ali ele iria explicar sobre o porquê havia matado Anne e provavelmente era a sua própria carta de suicídio, mas enfim, não tenho certeza a respeito disso. Adorei a explicação que você deu a cerca do pombo. Abraço.
ResponderExcluirSó não concordei com essa trecho "Não conseguimos nem ficar com raiva de Georges por esse ato". Porque por mais que entedemos os motivos dele, vimos no decorrer do filme o esgotamento físico, emocional, psicológico de Georges, ainda penso que ninguém (mesmo alguém já sem lucidez) merece ter a vida tirada dessa forma. Após ela dormir com uma das histórias dele. Eu assistindo a cena, quis entrar no filme e o impedir. Ele só não teve suporte social, familiar e assistencial para lidar com a doença da esposa, aí chegou no extremo para ambos. Inclusive assassinar a própria esposa, que em algum breve tempo iria de forma natural.
ResponderExcluirConcordo absolutamente. Cuidar de quem cuida é fundamental em meio ao adoecimento de quem se ama. Também não acredito que ele ficou louco, mas sim um claro estado de Burnout e mais alguém quem presencia sua amada morrer sem ser adequadamente cuidada em meio à diferentes esferas de sofrimento.
ExcluirConcordo absolutamente. Cuidar de quem cuida é fundamental em meio ao adoecimento de quem se ama. Também não acredito que ele ficou louco, mas sim um claro estado de Burnout e também alguém que presencia sua amada morrer sem ser adequadamente cuidada em meio a diferentes esferas de sofrimento.
ExcluirTexto emocionante e esclarecedor, obrigada…
ResponderExcluirNossa, só vi hoje o filme, fiquei no ar, mas que benção achar seu blog que tirou minhas dúvidas, engraçado que eu também não fiquei chocada com a atitude dele nem senti raiva, pensei, coitada parou de sofrer. Para quem teve uma vida tão feliz como a dela, como foi amada, não era justo ficar naquela situação. E ele também sofreu tanto com o sofrimento da amada que enlouqueceu.
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