quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Saxofone Para Um Analfabeto

Roberto Ferri -Sfinge
Comprei um saxofone, mas não sei tocar. Ele é como um caderno vazio para quem não sabe escrever: não sei arrancar-lhe os versos, não sei ritmar as palavras. É tudo uma triste energia potencial. Falta-me a poética para fazer-lhe energia cinética.

Chove e o tempo está nublado. Tudo é cinza, borrão melancólico. Manhã para comprar um livro de poemas. Comprei um Mário Quintana.. Mas também não sei ler. Meu pai era músico e morreu antes de me ensinar a extrair a melodia do poema. Tropeço no título, me perco nas rimas e no labirinto não sei como prosseguir. Tem de ser bilíngue para se tocar saxofone e ler poemas.. As letras são notas musicais.
Mas agora não aprendo mais. O cérebro já é músculo atrofiado e os olhos estão calejados de poeira acumulada que se fez catarata.

Meu quarto é breve, pequeno como um poema do Quintana. Vai-se de uma parede a outra em poucas palavras. Percorre-se uma estrofe com passos lacônicos.

Quem não enxerga tem que aprender a tatear. Então aprendi a sobrepujar a cegueira lendo a beleza do papel em branco e fazendo melodias com o silêncio. O papel em branco tem muito a dizer e o silêncio pode gritar. É preciso estar atento para se entender a mensagem dessas vozes dismorfas. É por isso que muitos não suportam ficar sozinhos. Os papéis e o silêncio viram fantasmas. E o homem tem medo do desconhecido, não entende.

Agora causei uma torção no sentido. Agora os cegos são os outros. Sou analfabeto mas escrevo existência, participo na composição do instante.
Posso dizer que leio meu livro e toco meu saxofone. É tudo existencial.
É questão de musicar a vida. Ad infinitum.



**Ironicamente, não consigo escrever no silêncio. Enquanto escrevia, eu escutava isso: Clueso e Antonio Lucaciu -Beinah

2 comentários:

  1. Excelente postagem, muito bem colocados as metaforas e a forma como relaciona duas expressões da alma (arte/criação). Ótimo texto, muito bom mesmo, estarei visitando ele mais aos Sábado que é quando me sobra um tempinho para os papos virtuais.

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  2. Oh meu amigo, muito obrigado! Gostei de você ter captado a relação arte/criação.
    Obrigado!

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