segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Asilo Para Jovens

Tetsuya Ishida
É prática comum dos Estados criar guetos para quem foge ao padrão não "contaminar" o restante.
Conviver com as diferenças é tarefa difícil demais para quem adota o etnocentrismo como prática espiritual. Quando há diferenças, o errado é o outro. Isolemos, pois, as diferenças.
Aqui somos deixados e esquecidos como velhos objetos numa casa abandonada.. pó. Claro que é um gesto de amor. Pelo menos é o que nos dizem: "aqui seremos bem cuidados, bem tratados, as refeições são no horário certo, há pessoas especializadas para lidar conosco". Sempre o bom discurso de benevolência, cinismo que sempre vem travestido de caridade. Mas há um fator que não entra na conta: quero ir pra casa.
Não me deixam ir. Aqui somos todos jovens. Mas o normal é ser velho, cabelos brancos, ter um andar curvado, um leve tremor nas mãos. Somos uma espécie de aberração enquanto não fazemos 60. Com o aumento da longevidade e a diminuição da taxa de fertilidade, a população envelheceu. Além disso, estão todos estudando mais. Com a popularidade da filosofia, as pessoas estão absortas demais na experiência do pensamento para pensar em sexo.
As mulheres não querem ser donas de casa e assistir a novelas enquanto os homens não querem mais assistir futebol e falar sobre sexo. Tudo mudou, tudo muda. Todos querem ser presidentes.
Os jovens foram se tornando minoria. E como toda minoria bem sabe, a maioria é cruel. A maioria é quem cria conceitos como "normal". O "normal" é invenção, não é mais do que a maioria que se denomina padrão. Quem não se encaixa é mero observador externo, fica à margem.
Se sermos deixados aqui é gesto de amor, inferimos que a convivência com os entes, na dupla banda da relação, representaria o ódio, a indiferença, ou qualquer outro substantivo antitético do amor.
Quero ir pra casa. O pedido é sussurrado, mas carrega a intensidade do grito. A maioria é velha de mais pra me ouvir se eu não gritar, então me sinto num monólogo de tragédia grega. Os velhos me assistem sem me ouvir, não há a catarse aristotélica. Esse fato é comum a toda minoria: não temos interlocutor. Ouvir é democrático demais pra quem se acostumou a hierarquias.
Quero ir pra casa. Mas minha vontade de nada serve. Vontade aqui dentro é caro, é requinte. Quem tem poder pra querer são os velhos, que vêm nos visitar uma vez por mês, deixando uma flor, esmola de falso carinho, e vão embora. Chegam com a flor, tomam o cuidado de abordar assuntos sempre superficiais -para não perscrutar demais nossas vontades-, sempre lançando olhadelas constantes ao relógio, deixam a flor e vão embora.
As flores sempre nos compreendem: são jovens e colhidas de onde gostariam de estar. Em seguida são colocadas solitárias em algum canto frio, esquecidas em alguma água que apodrece, para depois serem jogadas na vala comum. Elas são as únicas que compreendem meu arfar, que compreendem minha falta de ar. Talvez as flores me veriam se pudessem olhar no espelho.
Tenho 20 anos. Ainda faltam 40 para que eu chegue aos 60. A biopolítica -e a tanatopolítica- gosta desse cálculo sobre a vida, ou sobre a morte. Porque aos 60 eu morro, contrariando as expectativas. Morro por tudo aquilo que não vivi, por tudo aquilo que me calou porque não escrevi, por tudo aquilo que gritei mas só eu me ouvi, por todas as minha palavras que o vento carregou e não semeou. Mas acima de tudo, morro por todo aquele que, enquanto eu vivia, me enterrou.


Gosto desse vídeo. Tem tudo a ver com  o tema. E foi o que me levou a escrever o texto.
Alex Beaupain -I Want to Go Home

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Aliterações

Hieronymus Bosch -Hell
Pensando, percebi poucos poemas perpassados por pequeninas palavras passageiras parando perturbadas para protestar por paradoxos pouco pitorescos e pensantes poluindo paisagens.
Rondaram rabiscos roseanos respondendo risadas, reclamando raciocínio. Razão rasteira restava rastejando, rosto roubado. Restos de respiração.
Estatizaram. Esperar é entrever espaços: epistemologia. Eram espertos e estavam estafados. Enalteceram escuridões. Escutaram estalos, em estrépito. Esperança esvaindo-se esmaecida: engodo. Escatologia.
Lamentaram, lívidos: ladrões. Letras lutavam ladrando. Lincharam, lograram. Levaram leis, lições, locuções. Largaram lágrimas, lesões, lembranças.
Conversando com compatriotas, convenceram-nos: curariam-nos. Convalesceram. Cuidaram corretamente: Cuidado com cidadãos comunistas = cilada, cicuta. Curvaram-se. Concentraram-se. Correram conquistando contradições.
Desdenharam dos destinos doentios desenhados diabolicamente. Desconstruíram deontologias dentre dentes. Deslizaram durante dificuldades, dedilhantes.
Viram vitórias vindo velozes. Veriam vencer vontades verdadeiras. Vociferaram veementemente, verborragicamente.
Furiosos, fizeram fogos. Feriram ferozmente. Ficaram fatigados. Fabricaram fados, finais felizes. Fabricaram finais felizes. Finais, felizes..  Fim.

sábado, 27 de outubro de 2012

Abandonei o Teatro

Little Girl and Canary
Quando foi que me percebi mulher? Quando foi que a infância me deixou pra trás? Foi na primeira transa? Foi na primeira menstruação? Não, não foi na menarca. E nem quando a menstruação não desceu.
Eu lembro que quando era mais nova, eu usava shorts bem largos e camisetas velhas. Brincava na rua e fazia teatro porque não tinha vergonha de nada, muito menos de mim. Não me importava com que adjetivos usavam pra me apelidar. Já havia representado tantos papéis.. E o teatro ensina que por mais brilhantemente você encarne o outro, o que mais vale é como você representa a si mesmo. O "conhece-te a ti mesmo", enxergar cada faceta de si, é um desafio. E meu papel eu interpretava bem. A vida também é ficção, mas pouca gente sabe disso. Guardarei pra mim o segredo.
Lembro que as coisas mudaram quando chegaram os novos vizinhos. Havia um garoto, que era filho do excêntrico casal. O garoto me olhou de uma forma diferente. No mesmo instante, percebi que ele não era mais criança. E essa revelação me trouxe outra: eu também não mais o era.
O garoto foi um divisor de águas na minha infância. A partir daquele olhar, os shorts não mais serviam, e brincar na rua virou brincadeira infantil demais. Aliás, o lúdico já não podia mais. A partir daquele olhar, só serviam os vestidinhos novos e as leituras tinham que estar na ponta da língua. Ele era mais velho e conversava bem. Eu tinha que me mostrar à altura. Eu já era uma moça.
Pra minha surpresa, ele se afastou. Desprezou minhas conversas sobre literatura e filosofia e quando eu o visitava, sempre estava doente.
Consegui conversar com ele um dia. Na verdade foi mais um monólogo, quem mais falou fui eu. Ele não dizia nada, até que explodiu em ira. Gritou mais alto que eu pra me calar e disse aos berros que perdi a inocência ao interpretar outra pessoa. Eu não era a mocinha que tenta ser diferente por causa de outrem. Eu era a menina dos shorts, que não ligava pra aparência e entendia tudo de biologia. Vivia na terra. Eu era mais ética do que estética. Estatizei e lá fiquei por um bom tempo. Já era noite quando consegui me mover. Vaguei pela rua em busca de um rumo e acabei chegando em casa.
Abandonei o teatro.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Confissões

Confessione -Giuseppe Maria Crespi
Assim como aqueles que subitamente percebem que a morte está próxima e fazem um flashback de sua vida, faço agora um balanço do que chamo existência. Não serei excessivamente indulgente, assim como a vida não o foi comigo. Somos acometidos por uma moral muito besta em relação à morte. De mortuis nil nisi bonum, ou dos mortos só se fala o bem. Além do mais, como já diz outro adágio, elogio em boca própria é vitupério. Coloca-se nessa conta que a autocomiseração sempre me pareceu uma forma muito covarde de encarar a si mesmo, mesmo na morte.

Quanto ao amor, segui à risca o ideal ascético que era valorizado em meu meio. A religiosidade se tornava uma prática de vida e uma meta a ser alcançada com tal esforço, que se tornava uma espécie de dessubjetivação de nossa identidade. Os fluidos corporais nos mancham para sempre, assim diziam. E Deus a tudo observa. Me apaixonei por diversas vezes, mas não cedi. As vontades que vêm do corpo não enobrecem o espírito. A prática de banhos frios se tornou freqüente para aliviar as tensões da carne em plena madrugada de inverno.

Quanto às amizades, meus amigos são todos iguais a mim. Não sei dizer se eles sentem algum remorso pela vida não vivida. Eles se dizem muito felizes, mas ao se confessarem, não é o que parece, nem o que transparece. Um grito mudo surge ali naquelas confissões lacrimosas que a sociedade não vê. Há coisas que só se conhece por trás da cortina do confessionário, ou num divã de psicanálise.

Quanto à minha relação intrapessoal, "tomai todos e comei: isto é o meu Corpo que será entregue por vós". Diz-se que todos possuímos Deus dentro de nós. E Ele está orgulhoso de mim. Vivi interpretando o papel que escreveram para mim. Alimentei a alma também com livros. Li muito a bíblia e Santo Agostinho. Me apoiei nas filosofias dogmáticas porque as céticas me tirariam da zona de conforto. Exerci o bem também para me sentir bem. Lutei contra o aborto, contra os homossexuais, contra as religiões de matriz africana e tentei converter índios que já possuíam religiões milenares, perdidos por esse meu Brasil. É um altruísmo, mesmo que voltado para a autossatisfação.

Após esse balanço, posso morrer em paz. Ou viver eternamente no paraíso. Talvez seja uma partida do mundo sensível para o mundo inteligível das idéias platônicas. Pode ser que eu vá para o paraíso dantesco. Estranho como eu saiba tão pouco após estudar tanto. Talvez seja essa mesmo a consequência do dogmatismo.

Aceite agora essa minha confissão como como aceitei as suas por tanto tempo. E que você faça bom uso desse novo posto que irá assumir. Estou feliz de ceder a você meu lugar e desejo que você possa tomar meu relato como filosofia de vida. Não o aceite como uma réplica a seu estilo jovem e tão diferente do meu. Eu já não teria forças para a sua tréplica.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

La Distance

Bohumir Roubalík -A Portrait Of a Man
Fui assistir a um espetáculo de dança, a convite de minha nova namorada. Fui com poucas expectativas e muitas reservas, pois o espetáculo se realizaria em um teatro não muito valorizado pela crítica. Sou daqueles que julgam o livro pela capa.

Ao chegar à porta do local, com o letreiro apresentando algumas luzes apagadas e outras penduradas por um fino fio, li o título maltratando a delicadeza do idioma francês em que se lia "La Distance". Tive vontade de voltar para casa.

Depois de enfrentar a fila -pequena- e pagar pelo ingresso, sentei-me na dura cadeira. Minha sala de estar me pareceu bem mais aconchegante sob essa perspectiva. As luzes ainda estavam acesas e minha companheira resolveu ir ao banheiro. Comecei a observar as pessoas sentadas na sala, como ávidos comensais querendo adiar ao máximo sua espera para aumentar o êxtase da saciedade.

Um detalhe, porém, me chamou a atenção. Parecia gritar bem baixinho em meio aos murmúrios: quase todas as pessoas presentes eram homens. E quase todos gays. Ao menos assim me pareceram. Exigi uma explicação de minha companheira e para minha surpresa, o espetáculo consistia em uma dança entre dois homens. Ela insistiu para que eu ficasse, que no final eu me surpreenderia. Novamente a vontade de ir embora. Mas resolvi fazer essa concessão como quem realiza o último desejo dos outros.

Os dois homens começaram a dançar em movimentos semelhantes a cortejos e olhares firmes, com a sedução calculada em milímetros. Movimentos em espiral como quem traga um ao outro para o abismo que há em si. No decorrer daquilo que parecia ser a apresentação mais bizarra que já tinha visto, aquilo tudo foi tomando conta de mim e aos poucos a beleza dos gestos foi destruindo as barreiras que construí ao longo dos anos. Uma a uma, elas caíram e no fim eu já estava em lágrimas, arrebatado pelo frenesi crescente e o beijo de despedida no final.

Em meio aos aplausos, as luzes já acesas, senti meu rosto enrubescer ao reconhecer meu filho ali em cima, em seu pedestal simbólico, sendo aplaudido de pé. Eu era um torvelinho de sentimentos. Ira, medo, confusão, arrependimento, vergonha. Tudo ao mesmo tempo. E tal como uma caixa de Pandora, os sentimentos foram se esvaindo, escapando do peito e me fazendo arfar desorientado. Não sei dizer bem o que prevaleceu, mas passado o atordoamento, eu só queria um abraço. Era meu filho que estava ali. Meu filho. MEU FILHO.

Abracei-o. Um abraço voraz, sem deixar transparecer a fome do contato, que tentava em vão encurtar toda a distância que coloquei entre nós durante tanto tempo. Nenhum de nós disse nada. Ele leu em meus olhos que sua sexualidade já não me importava mais. Ele era um ser complexo, possuía uma vasta existência. Prender-me somente a um ponto de toda essa trajetória seria limitar a mim e a ele. Aceitei-o em meus braços como uma criança que ele já não era. Nós, pais, percebemos em algum ponto da vida que aos nossos olhos nossos filhos não crescem.

Fui surpreendido por minha própria voz a perguntar o que eu relutava em querer saber: o quanto da sua vida eu perdi? Eu não queria saber a resposta, pois ela denunciaria minha ausência, que denunciaria minha incompetência como pai. Como pude ser tão negligente? Neguei a meu filho o que eu poderia oferecer de mais generoso: o diálogo. Não parei para escutar o que ele tinha a dizer, suas inseguranças, seus medos. Apenas afastei-o quando ouvir-lhe as palavras seria um gesto de amor. Escutar exige atenção, exige compreensão, exige carinho. Meu olhar desesperado deve ter-me denunciado, porque ele balançou a cabeça e fez um gesto canhestro como quem diz que isso também não importa. Senti vergonha de mim.
Foi tudo tão breve quanto sua partida. Ele saiu apressado, pois tinha um compromisso. "te ligo mais tarde" foram as únicas palavras que ele disse durante todo nosso fugaz encontro. Ele já tinha partido, mas eu continuava a repetir "me desculpa". Mas era pra mim mesmo.

sábado, 1 de setembro de 2012

Conversas

Diego Velázquez -As Meninas
Todo leitor é um escritor.
Um novo livro é escrito no ato da leitura.

Todo contemplador é um artista.
Uma nova obra de arte é feita na observação.

Todo leitor de poemas é um sofredor.
Um novo poema é escrito no choro.

Toda arte é desfeita e reconstruída quando alcança o interlocutor. Porque é disso que ele precisa: interpretação. Através da interpretação que se forja o diálogo entre o artista e o admirador de sua obra.

Diálogos
Conversas

O tempo me diz algo.
Mas não entendo.
Envelheço.

A lua me diz algo.
Mas não entendo.
Sonho.

O sol me diz algo.
Mas não entendo.
Cego.

O mundo me diz algo.
Mas não entendo.
Giros.

O tempo me diz algo.
Mas não entendo.
Passo.

A verdade me diz algo.
Não entendo.
Minto.

O silêncio me diz algo.
Mas não entendo.
Ele me cala.

Conversas que não se sustentam e me concluem.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Eutanásia

Caravaggio -Jerome in Meditation
Ser ou não ser? Eis a questão.
O questionamento shakespiriano traz uma gama de possibilidades, mas eu inventei para mim um significado. E se ele já existe, deixa estar. Quem nunca criou algo já criado?
Apresento meu relato parafraseando Hamlet, mas que ele não seja entendido como complexo de Ofélia. É um relato queixa. E uma queixa diálogo. E um diálogo monólogo:

As paredes brancas do hospital, as roupas brancas dos médicos, o semblante de derrota dos pacientes, as lágrimas dos acompanhantes. Tudo sem cor. Tudo isso me impulsiona a ir contra a corrente.
O senso comum luta contra a morte, o médico luta por uma vida, e eu luto por uma vida sem dor, nem que ela seja não existência.

Não me fale sobre ética se na sua experiência subjetiva dentro de seu corpo, fica difícil se imaginar sob a pele do outro. Há um deserto existencial entre nós. Eu grito, mas você não me ouve. Sua ética é o deserto. É desértica.

Cada dia para mim é como um capítulo no mito de Sísifo. Empurro minha pedra de morfina morro acima só para vê-la rolar morro abaixo. Você quer me ver transpirar a última gota, quer esgotar-me o fôlego para o infinito. Mas o infinito não existe. Lá é onde as retas paralelas se encontram. Nossas retas. Distantes demais.
Um dia o livro se cansa e Sísifo termina. O anti-herói morre e a pedra se parte.

Um tango argentino já não basta neste quarto de hospital. Um sorriso pintado dos palhaços que são mais tristes do que eu já não me compra. Uma mão amiga nessa imensidão branca já não me alcança.
Então me deixa ir. Não nascemos juntos e preservei teu nome. Minhas linhas não te traem, meus poemas não te rompem nem me corrompem.

O que me mantém vivo é uma máquina. Roubo-lhe a vitalidade elétrica. Sou um impostor. Essa vida não é minha. Seus sons ritmados são como passos, cada vez mais distantes, cada vez mais ausentes. São como uma pedra que se quebra. Que se quebrou. Deixa-me ir. Deixa-me morrer.

Música para incentivar as reflexões trazidas pelo texto:

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Saxofone Para Um Analfabeto

Roberto Ferri -Sfinge
Comprei um saxofone, mas não sei tocar. Ele é como um caderno vazio para quem não sabe escrever: não sei arrancar-lhe os versos, não sei ritmar as palavras. É tudo uma triste energia potencial. Falta-me a poética para fazer-lhe energia cinética.

Chove e o tempo está nublado. Tudo é cinza, borrão melancólico. Manhã para comprar um livro de poemas. Comprei um Mário Quintana.. Mas também não sei ler. Meu pai era músico e morreu antes de me ensinar a extrair a melodia do poema. Tropeço no título, me perco nas rimas e no labirinto não sei como prosseguir. Tem de ser bilíngue para se tocar saxofone e ler poemas.. As letras são notas musicais.
Mas agora não aprendo mais. O cérebro já é músculo atrofiado e os olhos estão calejados de poeira acumulada que se fez catarata.

Meu quarto é breve, pequeno como um poema do Quintana. Vai-se de uma parede a outra em poucas palavras. Percorre-se uma estrofe com passos lacônicos.

Quem não enxerga tem que aprender a tatear. Então aprendi a sobrepujar a cegueira lendo a beleza do papel em branco e fazendo melodias com o silêncio. O papel em branco tem muito a dizer e o silêncio pode gritar. É preciso estar atento para se entender a mensagem dessas vozes dismorfas. É por isso que muitos não suportam ficar sozinhos. Os papéis e o silêncio viram fantasmas. E o homem tem medo do desconhecido, não entende.

Agora causei uma torção no sentido. Agora os cegos são os outros. Sou analfabeto mas escrevo existência, participo na composição do instante.
Posso dizer que leio meu livro e toco meu saxofone. É tudo existencial.
É questão de musicar a vida. Ad infinitum.



**Ironicamente, não consigo escrever no silêncio. Enquanto escrevia, eu escutava isso: Clueso e Antonio Lucaciu -Beinah

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Assim Me Amou Zaratustra


Edvard Munch -Friedrich Nietzsche

Fui violentado. Abusei de mim mesmo.
Depreciei o corpo, e me esqueci de que a boca também é corpo. E em meio à cegueira desse equívoco, as palavras foram me entrando lentamente.
O adjetivo foi substantivado para ganhar forma, e o verbo ditava a ação. Eu estava cego, e sentia tudo. Pelo tato exacerbado, senti as palavras penetrarem cada poro do corpo dolorosamente. Desacordei.
Meu corpo sangrento foi carregado por Zaratustra. Ele nos levou para o alto da montanha, para dentro da caverna. Perguntei a ele onde ele estava quando tudo aconteceu. Por que não me protegeu? Por que me abandonastes? Ele me respondeu que a profanação do corpo é irrelevante contanto que a alma esteja intacta. Achei aquilo tudo muito estranho. Alma é um termo muito cristão para um mundo onde Deus está morto. Prefiro a poética que nos preenche o corpo metafísico, nos fazendo equilibristas.
No entanto, indaguei a ele se a alma não estaria corrompida depois do que fiz com meu corpo. Respondeu que a carga moral que eu carregava era muito pesada, mas eu aguentaria. Era hora da metamorfose: camelo para leão. Era hora de buscar minha liberdade pela transvaloração.
Ele pediu que eu não limpasse o sangue. O simbolismo se apagaria. Novos valores não são criados impunemente. Caí de joelhos e pedi perdão, num impulso que lembrava a postura servil que me assombrava no passado. Zaratustra me deu a mão, me abraçou e sussurrou em meu ouvido que não havia o que temer. Saímos da caverna nitzscheana, não da caverna platônica, ele disse.
Entendi que Zaratustra era um sábio. Enquanto os fracos caíam um a um, ele passava incólume pela corda. Equilibrista que era. O homem é uma corda, atada entre o animal e o super-homem -uma corda sobre o abismo, assim ele me disse. E o que o mantinha equilibrado era a minha imagem no final do trajeto.
Assim me amou Zaratustra.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Resenha do filme O Palhaço

Selton Mello interpreta o palhaço Pangaré, palhaço que vive uma crise existencial e já não sabe mais se a profissão de palhaço é a que lhe cabe. É um palhaço que se mostra depressivo.

Se a princípio palhaço e depressão podem parecer grandezas antitéticas, essa convivência se torna plausível quando percebemos que a realidade muitas vezes difere da representação.

É um filme de contrastes, de antíteses, de paradoxos. A começar pela dicotomia da felicidade que o palhaço representa no palco e o humor apático -pode-se dizer tristeza- que ele mostra quando as cortinas se fecham, quando ele tem que representar a si mesmo. A ironia é representada pelo fato de, dentre todos no circo, justo o palhaço é o melancólico. Ora, o palhaço é aquele que pinta uma máscara de felicidade para esconder a desordem que há por baixo. Num mundo como o nosso em que a imagem é supervalorizada, é comum considerarmos o exterior como o determinante de uma personalidade. Assim como o monstro do livro It -A Coisa-, de Stephen King, a figura desse personagem não raramente mostra-se assustadora. Isso se dá pelo simples fato desses enredos causarem uma torção dessa figura. O enredo vira-lhes a pele ao avesso. É deixar de confiar na aparência para enxergar a complexidade que há dentro.

Há um silênco que reina em relação às pessoas ao redor de Pangaré. Todos percebem que ele sofre, mas ninguém diz nada, nem ele mesmo. A situação se agrava quando ele encontra Ana, que após uma breve conversa, o faz alimentar esperanças sobre encontrá-la em sua cidade.

O palhaço passa, então, a possuir um objetivo em sua vida vazia. Ele se desabafa com uma estranha, já que em sua família circense nada se diz. "Faço todo mundo rir, mas quem é que vai me fazer rir?", pergunta ele à estranha, mas fala é consigo mesmo, dando voz ao seu desespero.

E os contrastes vão sendo mostrados: o delegado corrupto de nome Justo, a solidão do palhaço exacerbada ao observar um casal se beijando, a vastidão de mundo que ele encontra ao abandonar a convivência de seus companheiros -embora eles mesmos sejam nômades-.

Ele inicia uma peregrinação solitária em busca de ana, e como que para concretizar o que seu pai lhe disse, a vida fora do circo decepciona Pangaré. Ana, sua meta de vida, é casada e o novo emprego que ele arranja é tão monótono quanto as pessoas que estão nele.

Ele volta, então, para o circo, pois "é a única coisa que ele sabe fazer", deixando ao telespectador uma dúvida quanto ao real motivo de sua volta: satisfação ou resignação? Antíteses!

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Poematerapia

Samuel Luke Fildes -The Doctor
Poematerapia. Lírica da ciência e tecnologia. Mais sentimento contra toda patologia.
Beleza da inexatidão poética, palavra regada a conta-gotas, ministrada de linha a linha. Leitura x apatia.
Não conter os suspiros, o choro, nem as gargalhadas. Indiferença como embolia.
Efeitos colaterais: risos e lágrimas. Também há a possibilidade de um como extensão do outro: o espetáculo como monarquia.
Aproveitar ao máximo o pensamento na arte do poema (o poema filosofa sobre o significado das coisas, então cabe a nós significar a filosofia do poema). Poesia-filosofia.
Depois de ler, utilize o pensamento apolíneo e faça uma resenha dionisíaca. Escrita como terapia.
Mínimo de 4 estrofes por dia. Métrica como prevenção, soneto como distopia.
Poema musical. Palavras cantando subjetividade. Ritmo como alegoria.
Versos para fazer compressa metafórica, cultura que não se perde. Ignorância sufocada logo no título-sabedoria.
Para qualquer enfermidade, o incólume na leitura se cria. Se ser ou não ser é a questão, sou mais a fantasia.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O Poder de Criação Feminino e a Inveja Masculina

          Esse texto é uma pequena brincadeira que resolvi fazer há algum tempo. Espero que gostem.



          A inveja pode ser definida como a vontade de possuir o que é do outro, e ao mesmo tempo desejando que o outro não mais o possua. Essa definição abrange objetos de valor material e também características inatas ou adquiridas. Esse sentimento é gerado pela incompetência ou a incapacidade de se adquirir o que é do outro.

          A inveja se faz presente no cotidiano popular, transparecendo na literatura, sendo exemplificada às crianças através de contos de fadas como A Branca de Neve, dos irmãos Grimm. No conto, a rainha, num arroubo de inveja, oferece uma maçã envenenada para se livrar da Branca de Neve. Aqui, o pivô de tal ato vil foi a beleza, a qual a rainha já possuía, mas não suportou ver na outra uma superior à sua.

          No cinema há o exemplo clássico do filme Amadeus, em que Salieri inveja o talento de Mozart, chegando ao extremo de arquitetar sua morte para roubar a autoria de uma de suas obras.

          Por fim, temos na religião, também, vários exemplos, sendo o mais emblemático o protagonizado por Lúcifer e Javé.

          Se a arte imita a vida, não é de se espantar que, no mundo em que cada um representa um papel de si mesmo, nossas relações também sejam marcadas por tais sentimentos conflituosos.

          “Venenosa e traiçoeira, a mulher era acusada pelo outro sexo de ter introduzido sobre a terra o pecado, a infelicidade e a morte. Eva cometera o pecado original ao comer o fruto proibido. O homem procurava uma responsável pelo sofrimento, o fracasso, o desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher. Como não desconfiar de um ser cujo maior perigo consistia num sorriso? Nesse retrato, a caverna sexual tornava-se uma fenda viscosa do inferno”. Assim escreve a historiadora Mary Del Priore, em seu livro Histórias Íntimas - sexualidade e erotismo na história do Brasil.

          O homem inveja o poder de criação feminino – por “poder de criação” entenda-se a gestação e todo o processo de formação de um novo ser. O útero é o gerador dessa inveja masculina por excelência. Nele, o homem é gerado e, com ele, a percepção da incapacidade de fazer o mesmo. Sócrates ilustrou bem esse fenômeno. Sua mãe era parteira. Além de tê-lo gerado e dado a luz, ela ainda ajudava outras mulheres a fazer o mesmo. Para a infelicidade de Sócrates, o golpe narcísico era duplo. A ele não era possível tirar da mãe a habilidade do parto, assim como não era possível atribuir para si o poder da concepção. Ele cria, então, a maiêutica, que em grego significa “arte de trazer à luz”. Ele ajuda seus discípulos a realizarem a concepção de suas próprias idéias. Na perspectiva freudiana, ao invés de recalcar a inveja, ele lidou com ela da melhor forma!

          A mulher, através do útero, personifica uma analogia com o divino, pois, apesar de precisar do homem para a fecundação, detém o poder de decisão sobre a vida que está sendo gerada. Poder esse que a cultura religiosa – que sempre exerceu e exerce muita influência – atribui somente às divindades. A mulher seria o lago de Narciso, refletindo para os observadores externos a potencialidade da criação e ao mesmo tempo o útero sendo a verve para as idéias que diminuem seu valor. Mexe com o brio masculino a possibilidade da mulher não precisar de um homem para decidir sobre uma vida que somente ela carrega. O homem tem fobia da possibilidade de se tornar descartável!

          Assim, o homem procura desconstruir a idéia da mulher criadora, geradora da vida, associando-a às idéias de insignificância e de morte. Seu útero é visto como um pênis invertido e os ovários representando os testículos. Sua importância era tão pequena que seus órgãos genitais não eram dignos de serem expostos. Ela é punida por deter uma habilidade, um conhecimento intrínseco. Constrói-se a Eva responsável por morder o fruto, gerando a desgraça, e a Pandora responsável por abrir a caixa, deixando escapar todos os bens. Está formada a ideologia. O homem ergueu a mulher causadora de toda gama de desgraças para refutar a mulher que possui em si o oco gerador da vida.

          A inveja masculina está enraizada em seu orgulho, e também em sua ingratidão, pois ao condenar a mulher, o homem se esqueceu de quem o gerou.