quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

A Velhice da Mulher

Retrato de Adele Bloch-Bauer I -Gustave Klimt, 1907 


Hoje me olhei no espelho e não reconheci meu rosto. Fui retocando um pedaço aqui, outro ali, sempre negando a passagem do tempo. Que mulher quer ficar velha?! Somos amantes da estética de plástico. Nossas Barbies não envelhecem.

Cheguei na meia idade. Meia. Meio caminho percorrido antes da morte. Já contam nosso tempo restante em vida. A matemática pode sempre ser cruel com a nossa utilidade.

Os cabelos brancos começaram a aparecer. Me aconselharam pintar os cabelos. Disseram que não existe esse negócio de mulher grisalha. "Veja o telejornal. As apresentadoras mulheres saem de cena antes de envelhecer. Cabelos grisalhos é coisa pra homem". Mas que fim digno. Sair de cena enquanto ainda se está no auge. Pintei os cabelos.

As primeiras rugas começaram a aparecer. Me aconselharam fazer uma plástica. "Que tipo de mulher ostenta os pés de galinha"?! Eles tinham razão. Nossa idade não pode servir como cartão de visitas. Fiz a cirurgia, sofri, mas levantei tudo o que caía. Recebia elogios e voltei a receber cantadas pelas ruas. Até que encontrei o homem ideal. Ele disse que minha "boa aparência" foi o que lhe chamou a atenção. O romance durou o tempo que ele demorou pra ver a diferença entre meu rosto e minhas mãos. Há rugas que a plástica não esconde.

Mas prossegui tentando manter a cabeça erguida. Foi quando fiz 50. A idade de ouro. Me aconselharam mentir a idade. "Nenhuma mulher diz a sua idade assim. E quando perguntam, diga que é falta de respeito". A idade é tão vergonhosa de se dizer quanto o salário. Desde então, nos meus aniversários sempre coloco o mesmo número sobre o bolo. As velas dizem que faço 37 há cinco anos. Meus amigos fingem não notar o elefante na sala, e eu finjo não notar suas caras de desapontamento.

Um sinal da velhice que me preocupou. Menopausa. A minha chegou e eu a encarei como ela é de fato: um arauto de morte. Queria ficar feliz pelo fim da rotina de absorventes, anticoncepcionais e cálculos confusos, mas não. "Agora, além de velha você está seca". Eles têm razão. Quem vai querer uma mulher na menopausa?! Pra isso não há remédio nem conserto.

E tantos outros casos que me fizeram mudar. Não foi contra minha força, porque eu já tinha assumido como correto o discurso que me impedia de envelhecer. Agora não quero encarar o espelho. Quero tirar esses acessórios que coloquei pra que não me vejam. Tenho vergonha do tamanho das minhas orelhas, uso brincos grandes. Vergonha do tamanho do nariz, uso maquiagem para afinar. Tenho vergonha da solidão, saio de casa sempre carregando um livro. A gente vai criando armaduras contra os duros comentários.

Quando criança, me perguntavam o que eu queria ser quando crescer. Eu queria ser grande, adulta. Hoje eu me pergunto o que quero ser daqui pra frente, com vários objetivos alcançados. Eu só queria me despir. Despir a pele e começar de novo.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Inferno

José Benlliure y Gil -La Barca de Caronte


Deixei meu corpo lívido e sem vida para trás. Após o julgamento, veio a sentença: inferno. Fui pego no contrapé. Durante a vida só fiz o bem, preguei a moral e os bons costumes, construí igrejas a cada esquina e coloquei deus em cada casa. O amém ecoava intenso como densa bruma a entupir os ouvidos.

Não há escolha senão descer. Seguindo a fila de almas, me perco em meio à multidão. Trapaceiro, tento achar uma saída, algum buraco milagroso nas paredes que me alçará à redenção. Depois de um tropeço, rastejo junto aos vermes. Açoites me colocam de pé. São demônios que patrulham os cantos, e dando pancadas com o ferro em brasa, me obrigam a retomar o caminho.

O Caronte me pede uns trocados. "Estou liso", é só o que consigo dizer em meio ao desespero frente àquela máscara sem rosto, com olhinhos que sei que zombam de mim. Ele me rouba um pouco de alma como se fosse moeda de troca. Espero, mas não me volta troco. Fico preocupado, porque alma é o que tenho de menos. Poderia ter roubado vontade, assim só me restaria resignação para ficar nesse lugar imundo.

Começamos a travessia. Não sei como ele consegue, com um remo só, vencer o nada. Vejo rostos submersos nas águas. Seus semblantes já perderam o instinto de sobrevivência, agora só imploram por perdão. Ainda alimentam a esperança de sair dali, contrariando a placa na entrada do inferno que manda fazer justo o contrário. Estico a mão para tocar-lhes o rosto. Não alcanço. Inclino o rsto para tocar-lhes a alma. E eles entendem o recado: não estão sozinhos. Vejo de relance um rosto familiar me escarrar no rosto. Era Augusto dos Anjos, sempre a escarrar na boca que lhe beija.

Chegamos ao fim da travessia. Não há norte, só há chão. Andamos até os cantos, nas paredes. Depois de me trancar em uma sela -pela eternidade-, o Caronte me encara demoradamente. Ali no escuro, percebo que seus olhinhos não são zombeteiros, mas sim de pena. Digo a ele que não se preocupe, e ele assente com um gesto de cabeça. Ele me diz, com a voz rouca pelo tempo, que atrás das grades seria minha nova casa, mas que não estou sozinho. Eu digo a ele que tudo bem, pois é tudo questão de perspectiva, porque de onde eu estava, eu também o via atrás das grades. Se ele ainda tivesse lágrimas, acho que choraria por perceber que somos todos prisioneiros. Mas nem isso lhe resta. Talvez por isso o rio que atravessamos seja salgado.

Depois que ele se vai, fico sozinho para o meu castigo eterno. Quando percebo qual é a punição, os gritos me vêm à boca. Pois ali no canto, me encarando de volta, reconheço um rosto, pois é o meu. Vou ter que conviver comigo. Conhecer cada canto da minha alma. As lágrimas também já não há. Desisto. Não há pior castigo do que conviver consigo mesmo quando se sabe que a alma não é limpa. Me recuso, parto pra briga.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Texto Sobre a Peça Aqueles Dois



Antes de ler este texto (ou assistir à peça), leia o texto Aqueles Dois, de Caio Fernando Abreu, que serviu de base para a peça (é rapidinho, o texto é curto!): http://www.releituras.com/caioabreu_dois.asp

Por indicação de um amigo, fui assistir à peça Aqueles Dois, que será apresentada até outubro no Palácio das Artes. Escrevo este texto como leigo. Não conheço os pormenores técnicos do teatro e já peço perdão ao meu amigo e a todos os que possuem os olhos treinados para esses detalhes. Então por que escrever sobre isso?! Simplesmente porque um leigo escreve para outro leigo. Gosto de ler textos assim, que não abrangem aquelas partes técnicas que não entendo, deixando ver somente o olhar de quem se emociona durante a experiência, não passando disso.

Crédito: Rodrigo Zeferino



Raul e Saul. Dois nomes separados apenas por uma letra. Apresentados no primeiro dia de trabalho, os personagens riem da coincidência. Suas diferenças e semelhanças são mostradas, e eles vão se adaptando à intimidade que cresce à medida que os vários "eus" de um vêm à tona para o outro. Sabemos de antemão que é um encontro de duas almas distintas que se vêem iguais em meio a um "mar de almas", como um deles diz. Eles são estrangeiros denotativa e conotativamente: um vem do norte, e o outro, do sul. Além disso, seu cotidiano não é igual ao das outras pessoas do trabalho, assim como as suas aparências. São duas pessoas que, além de serem "de fora", são excluídas.



O texto tem como personagens principais apenas os dois. Sendo assim, no início achei que os quatro atores no palco representassem Raul e Saul, ambos em épocas diferentes. Mas não. Os quatro são Raul e Saul ao mesmo tempo. O número aqui não importa porque os dois personagens querem ser um só. É a fome afetiva que acomete e contra a qual é difícil resistir. Eles vão revezando entre os personagens e os cenários, num jogo de claro e escuro da iluminação.

Com o início da intimidade, as pessoas do trabalho começam a ficar incomodadas. As moças, que antes se limitavam a esticadas de pescoços para observar brevemente, agora chamam toda a equipe para sair após o expediente. Quando vão a esses encontros, Raul e Saul ficam distantes, só entre eles. Eles se bastam. Esses personagens secundários também são interpretados pelos quatro atores, de forma muito divertida.

Saul desenhava rostos com enormes olhos sem íris nem pupilas. Ele não se via, ou se via ausente no mundo, e desenhava esses quadros metáforas. Ele quase sempre pintava quando olhava para o quadro de Van Gogh que tinha na parede. "(...)aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo.". Era o vazio e o deslocamento que o motivava. Assim também era Raul, que gostava de cantar boleros, em especial Tú Me Acostumbraste.
De Slapkamer -Van Gogh

Crédito: Chico Lima

Entre presenças e ausências passadas desejando presenças, fazem aniversário e o presente dado é uma forma de permanecer lembrado. Raul dá a Saul seu sabiá, Carlos Gardel. E o outro lhe dá seu quadro de Van Gogh. No teatro, a mão segura o vazio representado pela gaiola e os dois apontam para o nada, onde se encontra a parede com o quadro. Imaginar os objetos ficou belo na cena, pois são apenas simbólicos, representam muito mais do que o objeto em si, que é apenas imagético.

Com a morte da mãe de Raul, a ausência se intensifica e a fome afetiva se mostra com mais força. A fome é desespero, e desesperado é o abraço dado, em que a vontade é se tornar uno. A cena é feita assim, com medo de que tudo o momento passe, como no texto. E assim ficaram por um bom tempo. "Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool."

Crédito: Guto Muniz

A intimidade vai incomodando mais os colegas de trabalho, que chegam a reclamar com o chefe. "Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como "relação anormal e ostensiva", "desavergonhada aberração", "comportamento doentio", "psicologia deformada", sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral.". Os dois são demitidos, punidos pelo afeto.  Entram no mesmo táxi e vão embora. "Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram."

A mensagem final do autor é como uma martelada. Continua muito atual, apesar do conto ter sido escrito em 1982. Em nenhum momento do conto é dito que os personagens são homossexuais. Podem ser apenas bons amigos ou podem ser mais que isso. Atualmente já foi cunhado o termo "bromance" para designar a amizade entre dois homens que não teme demonstrar carinho (leia  http://pt.wikipedia.org/wiki/Bromance). O que interessa é que os colegas de trabalho sentem aversão ao afeto. E assim também é na vida real.

O que nos fica após a peça ou após o texto, é que os personagens ainda se fazem a mesma pergunta: o que é o amor?! Talvez já tenham descoberto.

Cena da peça Prazer, da mesma companhia de teatro (crédito: Guto Muniz)

terça-feira, 19 de agosto de 2014

O Universo Numa Capa de Livro



Quem quer que tenha dito que o universo está numa casca de noz, estava mentindo. O universo se encontra na capa de um livro. Analise a capa junto com a pessoa que a carrega e terá um monte de significados. Os detalhes são preciosos e temos que ficar atentos. Um piscar de olhos pode nos cegar para o infinito particular.

Vamos começar por aquela garota ali no fundo lendo O Mito da Beleza, da Naomi Wolf. Com certeza ela começou a ler essa autora pelo livro chamado Vagina- Uma Biografia. Ela o descobriu quando a Apple censurou a vagina do título. O proibido sempre soa como um convite. Sentada ali sozinha, se cansou de ser bonita. Ninguém a vê como alguém inteligente (e ela de fato o é). Há algo de sofrido na beleza porque perto dela tudo se torna comum. Mas desconfio que nos desejos mais desesperados, essa moça queria ser apenas isso mesmo, comum. Vamos desejar-lhe boa sorte.

Aquele rapaz ali na frente lendo o bispo Macedo se acha uma pessoa exemplar. Não espalha, mas ele contribuiu para o Templo de Salomão. Se perguntarem a ele como ele se define, ele dirá que é uma pessoa de bem, defensor da família, da moral e dos bons costumes. Mas enquanto ninguém via, ele condenou o casal de lésbicas que conseguiram adotar um bebê. Que entreguem para o orfanato, ele diria. Acredita em teorias da conspiração e é capaz de jurar que os Illuminati estão implantando a Nova Ordem Mundial através de chips que as pessoas usarão sob a pele com a marca da besta. Isso tudo enquanto espera pela volta do bondoso Jesus Cristo. Oremos por ele e passemos adiante.

E aquele rapaz ali lendo Don Kulick?! Sei que conheceu o autor lendo sobre suas análises de pornografia da gordura. Ele se diz abertamente homossexual e não pede por aceitação, obrigado. Só quer respeito. Também se diz livre de preconceitos, mas faz juízo de valor entre ativos e passivos e não anda com os afeminados para "não queimar o filme". E diz isso o tempo todo, a fala sempre precedida pelo "nada contra, mas..". É sempre um negócio muito doido perceber como algumas pessoas perpetuam os preconceitos que elas mesmas sofrem.

Agora observe aquele rapaz ali, de preto, lendo Dawkings. Aquele lá no canto. Ele curte a página da ATEA no facebook e quer fazer do ateísmo uma nova igrejinha. Não vê que seu comportamento está igual ao dos  TJ -Testemunhas de Jeová- que ele tanto abomina quando batem à sua porta todo domingo de manhã. Ele quer que o mundo saiba do seu ateísmo raivoso, procurando uma boa briga pela verdade de deus em cada esquina e acredita em uma eterna dicotomia entre ateus e cristãos, os bons e os maus.

Há uma transexual ali na frente. Ela está lendo Filha, Mãe, Avó e Puta, livro da Gabriela Leite. Leitura deliciosa. Essa moça não teve a vida fácil. Expulsa de casa cedo, sempre se revoltou porque a sociedade lhe atribuiu um gênero que não lhe cabe. Teve que se prostituir no início porque não conseguia emprego em lojas. Nas entrevistas, ouvia sempre que sua "imagem" não coadunava com os objetivos da loja. Isso dito entre sorrisos, claro. Militante, aposta que as futuras gerações estudarão os tempos de hoje como a quarta onda do feminismo, em defesa de mulheres como ela. Mas ainda hoje sofre por não encontrar uma definição excelente do termo mulher, sem enxergar que a mulher foi construída e gênero tem que ser tratado como idéia velha. Mas ela está no caminho certo.

O restante dos passageiros não carrega livros. Não podemos ler seus abismos. Mas uma coisa me intriga nesses leitores.  Por que todos eles sofrem com problemas relacionados à visão? Enxergam muito bem, mas não estão conscientes da cegueira que impede a visão do todo. Só vêem os cantos e não aparam as arestas. Queria conversar com eles, mas tenho meu próprio livro para terminar.

Eu me sento ali no fundo mesmo, meio que escondido. Leio Três Verões, da Julia Glass. Novamente peço que não espalhem, mas esse é meu livro preferido. Ele me mostra como a vida é sofrida e às vezes não vale a pena. Mas se soubermos enxergar o todo, cada um encontra um melhor caminho. E digo a verdade. Senão o livro não teria sido escrito.
Por isso escolho prosseguir e tento a poesia antes de mais nada. E dou risada enquanto vou aprendendo que é um erro julgar o leitor pela capa.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Quarenta Cigarros

After The Thrill Is Gone -Jack Vettriano


Perdi o relógio.
Contava as horas pelos cigarros espalhados no chão.
Três cigarros.
Olho pra mim, contemplo um mundo.
Contemplo o vazio.
Sete cigarros.
A barra do vestido toca o chão.
As lágrimas umedecem os cigarros.
O sorriso seca as lágrimas.
Entre sorrisos e lágrimas a vida mostra seu equilíbrio.
Treze cigarros.
O número me abre pro misticismo da vida.
Quanto dela é destino e quanto dela fui eu que criei?
Dezessete cigarros.
Desisti de pensar.
Só quero estar viva.
Faz um ano que recebi o diagnóstico.
Vinte e três cigarros.
Vivi um ano inteiro com medo.
A cada manhã a mesma pergunta: "será hoje"?
"O hoje, talvez amanhã", dizia a voz interior ao final do dia.
Trinta cigarros.
Hoje acoredei com essa certeza.
Hoje completo o ciclo.
O salto esfola o calcanhar.
Fico descalço.
Trinta e três cigarros.
Fecho a porta.
Fecho a janela.
Não quero luz, não quero som.
Se vou conviver comigo, que seja de uma vez.
Trinta e sete cigarros.
Tiro o vestido.
Quero morrer nua, com o nariz para o céu.
Descruzo os braços como quem aceita a vida (ou o que resta dela).
A respiração falha.
Só queria saber as horas.
Mas abro um sorriso.
Quarenta cigarros.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

International Drag Day -um papo sobre Rupaul's Drag Race

Rupaul

Dia 16 foi o International Drag Day, ou o Dia Internacional de Drag. O termo drag possui amplo significado, mas aqui vamos ficar com o que faz referência à mudança na própria aparência para brincar com o gênero, tendo o objetivo de entreter. Há vário tipos de drag.

Drag queen - homem se apresentando como mulher
Drag king    - mulher se apresentando como homem
Faux queen - mulher se apresentando como drag queen
Faux king    - homem se apresentando como drag king

Lady Gaga como Jo Calderone

Drag sempre está relacionado ao exagero. Não é apenas personificar, se não seria um impersonator. Fazer drag é pegar os detalhes e exagerá-los, às vezes ao máximo. A cantora Lady Gaga é um ótimo exemplo. Suas apresentações como Jo Calderone são hilárias. Não há dúvidas de que o papel que se representa acaba virando uma persona. Quem faz drag é capaz de descrever até a personalidade do seu personagem.

Assim, nada melhor do que falar de Rupaul's Drag Race no Drag Day. O programa é um reality show de drag queens, em que se pode ver a arte que há por trás da coisa em meio a muitas risadas.

Laganja Estranja -6ª temporada

Mais do que simplesmente emular um gênero para a audiência, o que se faz ali é um ato político travestido de muito humor (desculpa, não resisti o jogo de palavras rsrs). Tem de ficar atento para não perder as sutilezas. As melhores se revelam na linguagem. Fica claro o esforço que tem a equipe do programa para montar uma linguagem que diverte e é ao mesmo tempo engajada.

Para falar da linguagem, quero lembrar Madonna, em seu discurso no Amnesty International's Bringing Human Rights Home concert, em fevereiro desse ano, que agradeceu às meninas da banda Pussy Riot por tornar a palavra pussy (vagina) uma palavra dizível dentro de casa. Antes, era uma palavra "ilegal", e agora as crianças dizem pussy o tempo todo, continua ela. Madonna e as Pussy Riot mostraram como uma palavra, usada em um diferente contexto, pode chamar a atenção para o preconceito. Porque muitas vezes o preconceito se mostra na semântica. Assim acontece em Rupaul. (a referência a Madonna aqui também é proposital. outra sutileza rsrs). Veremos:

Já que a maioria do preconceito nesse universo tem origem na misoginia -as drags são execradas por emular 'o outro sexo'- vamos começar por bitch, palavra que no inglês é largamente usada para ultrajar mulheres, no programa é usada de forma muito amigável. É quase como o nosso 'colega'. Latrice Royale, participante da 4ª temporada, nos dá uma nova significação para o termo:


Bitch - Being In Total Control Of Herself (estar em total controle de si mesma)

 De acordo com Rupaul, a drag que quiser vencer a competição deve ter charisma, uniqueness, nerve and talent (carisma, singularidade. resistência e talento). Juntando as iniciais, temos cunt, uma palavra que também significa vagina e é extremamente ofensiva quando usada para se referir a mulheres. De forma bem sutil, cunt virou uma qualidade que leva à vitória.

Durante o programa, os participantes contam como a infância foi difícil. Histórias horríveis, tendo até pai e filho que foram parar no hospital depois de uma briga envolvendo facas. Esses meninos crescem ouvindo adjetivos degradantes, como sissy, bitch, cunt, pussy, fag. É dito para eles que eles não têm colhões (you don't have balls to do this or that). Testículos viram sinônimo de masculinidade em uma relação metonímica que, por mais que eu tente entender, me escapa. Isso nos leva ao famoso "sissy that walk!" que Rupaul diz toda vez em que as drag race vão pra passarela apresentar suas criações.

Rupaul
É um jeito de dizer ao outro para não mais usar tais termos como ofensas, no melhor estilo Slut Walk, que chegou ao Brasil como a Marcha das Vadias.

Agora, fugindo um pouco ao tema da linguagem, o peso das participantes é um assunto a ser explorado. O que nos vem à mente quando pensamos no programa é 'beleza'. Não é segredo para ninguém que o padrão de beleza atual é o corpo magro. A gordura não é bem vista por muitos. Quando analisamos programas como America's Next Top Model, é de espantar que eles considerem garotas como Whtiney Thompson uma modelo plus size.


Whtiney Thompson


O que para mim é uma garota normal, para eles é plus size. Por aí pode se ter uma idéia de como andam os padrões de magreza beleza na moda. Em Rupaul, as big girls competem normalmente com as outras garotas. Porque assim deve ser. Tanto dentro do programa quanto fora dele. E lá, plus size é realmente plus size.

Darianne Lake, participante da 6ª temporada

Entre gordos, magros, latinos, brancos, negros e tantos outros, meu texto não esgota todos os assuntos que há para se falar. Mas espero ter explicado bem a importância do programa. É muito interessante vermos homens fragilizados que buscaram força para prosseguir em uma figura "feminina", se é que essa categoria ainda existe. Enquanto não temos um mundo com mais isonomia, programas como esse lutam como podem, "batendo de frente" e mandando um recado:

Raven, participante da 2ª temporada

sábado, 8 de março de 2014

Dia Internacional da Mulher Invisível



Mais um 8 de março e ainda há poucas pessoas escutando a voz do nosso feminismo.
Sim, nosso. Porque o feminismo não é só um, são vários.
O feminismo que vale para a mulher que trabalha fora, não é o mesmo que vale para a mulher dona de casa. O feminismo da mulher negra não é o mesmo da mulher branca, etc.
Sendo assim, continuamos surdos para as desigualdades que o feminismo mostra. Continuamos não querendo enxergar outras facetas do que é ser mulher. Continuamos deixando várias mulheres na invisibilidade porque assim é mais confortável para nós, demanda menos lutas.

Considerando, no geral, todas as mulheres, sabemos que o quadro não é favorável. As brasileiras ganham cerca de 30% menos que os homens para as mesmas funções, têm que se preocupar com a gravidez no mercado de trabalho, o casamento ainda é visto como a máxima realização das mulheres, elas ainda são vistas como "o sexo frágil".
Estatísticas mostram que a Lei Maria da Penha não diminuiu a violência nem as mortes contra as mulheres. Entre os anos 2001 e 2011, em média, 5.664 mulheres morreram de forma violenta, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, de acordo com dados do IPEA.
E ainda há uma infinidade de problemas.

Agora, considerando no particular todas as facetas do que é ser mulher, a coisa fica pior.
As mulheres negras continuam sendo marginalizadas. Na faculdade onde estudo, por exemplo, quase todas as faxineiras são negras e terceirizadas. Ganham pouco e a invisibilidade se mostra quando se nota que quase ninguém as cumprimenta, quase ninguém as vê. É um sistema cruel, que as faz trabalhar limpando um lugar cujos bancos elas provavelmente nunca ocuparão.
Mulheres jovens (31%), negras (61%) e com baixa escolaridade (48%) foram as principais vítimas brasileiras dentre as mortes de mulheres no período de 2001 a 2011.

Em O Mito da Beleza, a escritora Naomi Wolf começa o livro falando em liberdade para falar dessa grande indústria que faz das mulheres prisioneiras de um ideal de beleza construído às custas de um negócio que lucra sobre a cirurgia plástica, revistas femininas, garotas anoréxicas, bulímicas, garotas sofrendo bullying, preconceitos, etc. Parece que é proibido à mulher envelhecer. As rugas são apagadas em photoshop e as garotas crescem achando que o que vêem nos comerciais é real, tentando atingir uma estética do plástico (das bonecas Barbie) que é impossível. Nas palavras da própria Naomi Wolf:
 "A eliminação dos sinais da idade dos rostos femininos tem a mesma ressonância política que seria provocada se todas as imagens de negros fossem costumeiramente clareadas. Essa atitude faria o mesmo julgamento de valor com relação aos negros que essa manipulação faz quanto ao valor da vida da mulher, ou seja, que menos vale mais. Eliminar os sinais de idade do rosto de uma mulher equivale a apagar a identidade, o poder e a história das mulheres."
Podemos incluir aí a mulher gorda. Em uma época em que o trabalho árduo era reservado às escravas, as mulheres gordas eram o ideal de beleza. Depois que as mulheres conquistaram o direito de estarem em qualquer tipo de trabalho, a coisa chegou a ponto de lojas recusarem trabalho a mulheres por serem gordas.

Entre os torcedores de futebol (mulheres incluídas), ainda se usa o termo "maria" como termo para diminuir o time adversário. Como se se identificar com características ditas "femininas" fosse demérito para alguém.
O orgulho do macho ainda é algo a se ultrapassar nesse meio. Por conta dele os homens se atacam por achar que o outro, muitas vezes seu semelhante, possui essas características ditas "femininas", gerando aí muitos problemas conhecidos como a famosa homofobia do futebol.

A mulher trans ainda luta por visibilidade. Ela só é lembrada sendo a prostituta ou em alguma polêmica envolvendo protestos para que ela não use o banheiro feminino. Aliás, protestos, em sua maioria, encabeçados por homens.
De acordo com dados do ANTRA - Associação Nacional de Travestis e Transexuais- 90% das travestis e transexuais estão se prostituindo no Brasil. Claro que isso se dá menos por opção do que por uma necessidade. São pessoas que geralmente saem de casa cedo porque a família não aceita sua identidade de gênero. Deixemos claro que identidade de gênero não tem nada a ver com orientação sexual. Classificar uma mulher trans como "gay" é o que mais se vê por aí.
O mercado de trabalho fecha as portas por puro preconceito, como se trans fosse sinônimo de menos capaz. Muitas abandonam a escola porque os professores não entendem que elas não devem ser tratadas por nomes masculinos. O constrangimento é enorme e o ambiente se torna insustentável.
A mulher trans ainda sofre violência e ainda tem que lidar com o silêncio e muitas vezes reprimenda da polícia, que deveria ser o órgão ao qual recorrer.
O facebook da Daniela Andrade está cheio de relatos sobre o que ela passou e ainda passa por ser mulher trans. Recomendo.

Ainda há muitas mulheres invisíveis que não cabem nesse texto e que ainda necessitam de uma voz e de espaço digno. Negras, velhas, gordas, indígenas, trans, muçulmanas, prostitutas, etc. Não importa qual, há um feminismo específico para todas elas que precisa ser ouvido. Temos que fazer nossa parte e lutarmos para trazer para o centro essas mulheres que estão marginalizadas pelo discurso. O feminismo é uma luta de protagonismo da mulher, mas é responsabilidade de todxs nós. Esse é o meu desejo para esse 8 de março.