sábado, 27 de outubro de 2012

Abandonei o Teatro

Little Girl and Canary
Quando foi que me percebi mulher? Quando foi que a infância me deixou pra trás? Foi na primeira transa? Foi na primeira menstruação? Não, não foi na menarca. E nem quando a menstruação não desceu.
Eu lembro que quando era mais nova, eu usava shorts bem largos e camisetas velhas. Brincava na rua e fazia teatro porque não tinha vergonha de nada, muito menos de mim. Não me importava com que adjetivos usavam pra me apelidar. Já havia representado tantos papéis.. E o teatro ensina que por mais brilhantemente você encarne o outro, o que mais vale é como você representa a si mesmo. O "conhece-te a ti mesmo", enxergar cada faceta de si, é um desafio. E meu papel eu interpretava bem. A vida também é ficção, mas pouca gente sabe disso. Guardarei pra mim o segredo.
Lembro que as coisas mudaram quando chegaram os novos vizinhos. Havia um garoto, que era filho do excêntrico casal. O garoto me olhou de uma forma diferente. No mesmo instante, percebi que ele não era mais criança. E essa revelação me trouxe outra: eu também não mais o era.
O garoto foi um divisor de águas na minha infância. A partir daquele olhar, os shorts não mais serviam, e brincar na rua virou brincadeira infantil demais. Aliás, o lúdico já não podia mais. A partir daquele olhar, só serviam os vestidinhos novos e as leituras tinham que estar na ponta da língua. Ele era mais velho e conversava bem. Eu tinha que me mostrar à altura. Eu já era uma moça.
Pra minha surpresa, ele se afastou. Desprezou minhas conversas sobre literatura e filosofia e quando eu o visitava, sempre estava doente.
Consegui conversar com ele um dia. Na verdade foi mais um monólogo, quem mais falou fui eu. Ele não dizia nada, até que explodiu em ira. Gritou mais alto que eu pra me calar e disse aos berros que perdi a inocência ao interpretar outra pessoa. Eu não era a mocinha que tenta ser diferente por causa de outrem. Eu era a menina dos shorts, que não ligava pra aparência e entendia tudo de biologia. Vivia na terra. Eu era mais ética do que estética. Estatizei e lá fiquei por um bom tempo. Já era noite quando consegui me mover. Vaguei pela rua em busca de um rumo e acabei chegando em casa.
Abandonei o teatro.

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