terça-feira, 9 de outubro de 2012

Confissões

Confessione -Giuseppe Maria Crespi
Assim como aqueles que subitamente percebem que a morte está próxima e fazem um flashback de sua vida, faço agora um balanço do que chamo existência. Não serei excessivamente indulgente, assim como a vida não o foi comigo. Somos acometidos por uma moral muito besta em relação à morte. De mortuis nil nisi bonum, ou dos mortos só se fala o bem. Além do mais, como já diz outro adágio, elogio em boca própria é vitupério. Coloca-se nessa conta que a autocomiseração sempre me pareceu uma forma muito covarde de encarar a si mesmo, mesmo na morte.

Quanto ao amor, segui à risca o ideal ascético que era valorizado em meu meio. A religiosidade se tornava uma prática de vida e uma meta a ser alcançada com tal esforço, que se tornava uma espécie de dessubjetivação de nossa identidade. Os fluidos corporais nos mancham para sempre, assim diziam. E Deus a tudo observa. Me apaixonei por diversas vezes, mas não cedi. As vontades que vêm do corpo não enobrecem o espírito. A prática de banhos frios se tornou freqüente para aliviar as tensões da carne em plena madrugada de inverno.

Quanto às amizades, meus amigos são todos iguais a mim. Não sei dizer se eles sentem algum remorso pela vida não vivida. Eles se dizem muito felizes, mas ao se confessarem, não é o que parece, nem o que transparece. Um grito mudo surge ali naquelas confissões lacrimosas que a sociedade não vê. Há coisas que só se conhece por trás da cortina do confessionário, ou num divã de psicanálise.

Quanto à minha relação intrapessoal, "tomai todos e comei: isto é o meu Corpo que será entregue por vós". Diz-se que todos possuímos Deus dentro de nós. E Ele está orgulhoso de mim. Vivi interpretando o papel que escreveram para mim. Alimentei a alma também com livros. Li muito a bíblia e Santo Agostinho. Me apoiei nas filosofias dogmáticas porque as céticas me tirariam da zona de conforto. Exerci o bem também para me sentir bem. Lutei contra o aborto, contra os homossexuais, contra as religiões de matriz africana e tentei converter índios que já possuíam religiões milenares, perdidos por esse meu Brasil. É um altruísmo, mesmo que voltado para a autossatisfação.

Após esse balanço, posso morrer em paz. Ou viver eternamente no paraíso. Talvez seja uma partida do mundo sensível para o mundo inteligível das idéias platônicas. Pode ser que eu vá para o paraíso dantesco. Estranho como eu saiba tão pouco após estudar tanto. Talvez seja essa mesmo a consequência do dogmatismo.

Aceite agora essa minha confissão como como aceitei as suas por tanto tempo. E que você faça bom uso desse novo posto que irá assumir. Estou feliz de ceder a você meu lugar e desejo que você possa tomar meu relato como filosofia de vida. Não o aceite como uma réplica a seu estilo jovem e tão diferente do meu. Eu já não teria forças para a sua tréplica.

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