terça-feira, 14 de outubro de 2014

Inferno

José Benlliure y Gil -La Barca de Caronte


Deixei meu corpo lívido e sem vida para trás. Após o julgamento, veio a sentença: inferno. Fui pego no contrapé. Durante a vida só fiz o bem, preguei a moral e os bons costumes, construí igrejas a cada esquina e coloquei deus em cada casa. O amém ecoava intenso como densa bruma a entupir os ouvidos.

Não há escolha senão descer. Seguindo a fila de almas, me perco em meio à multidão. Trapaceiro, tento achar uma saída, algum buraco milagroso nas paredes que me alçará à redenção. Depois de um tropeço, rastejo junto aos vermes. Açoites me colocam de pé. São demônios que patrulham os cantos, e dando pancadas com o ferro em brasa, me obrigam a retomar o caminho.

O Caronte me pede uns trocados. "Estou liso", é só o que consigo dizer em meio ao desespero frente àquela máscara sem rosto, com olhinhos que sei que zombam de mim. Ele me rouba um pouco de alma como se fosse moeda de troca. Espero, mas não me volta troco. Fico preocupado, porque alma é o que tenho de menos. Poderia ter roubado vontade, assim só me restaria resignação para ficar nesse lugar imundo.

Começamos a travessia. Não sei como ele consegue, com um remo só, vencer o nada. Vejo rostos submersos nas águas. Seus semblantes já perderam o instinto de sobrevivência, agora só imploram por perdão. Ainda alimentam a esperança de sair dali, contrariando a placa na entrada do inferno que manda fazer justo o contrário. Estico a mão para tocar-lhes o rosto. Não alcanço. Inclino o rsto para tocar-lhes a alma. E eles entendem o recado: não estão sozinhos. Vejo de relance um rosto familiar me escarrar no rosto. Era Augusto dos Anjos, sempre a escarrar na boca que lhe beija.

Chegamos ao fim da travessia. Não há norte, só há chão. Andamos até os cantos, nas paredes. Depois de me trancar em uma sela -pela eternidade-, o Caronte me encara demoradamente. Ali no escuro, percebo que seus olhinhos não são zombeteiros, mas sim de pena. Digo a ele que não se preocupe, e ele assente com um gesto de cabeça. Ele me diz, com a voz rouca pelo tempo, que atrás das grades seria minha nova casa, mas que não estou sozinho. Eu digo a ele que tudo bem, pois é tudo questão de perspectiva, porque de onde eu estava, eu também o via atrás das grades. Se ele ainda tivesse lágrimas, acho que choraria por perceber que somos todos prisioneiros. Mas nem isso lhe resta. Talvez por isso o rio que atravessamos seja salgado.

Depois que ele se vai, fico sozinho para o meu castigo eterno. Quando percebo qual é a punição, os gritos me vêm à boca. Pois ali no canto, me encarando de volta, reconheço um rosto, pois é o meu. Vou ter que conviver comigo. Conhecer cada canto da minha alma. As lágrimas também já não há. Desisto. Não há pior castigo do que conviver consigo mesmo quando se sabe que a alma não é limpa. Me recuso, parto pra briga.

Um comentário:

  1. Não entendo mais se seu isolamento é por prazer ou punição...

    Ou se isso tudo coexiste em ti, meu amigo...

    ResponderExcluir